domingo, 4 de novembro de 2007

O Homem da Cabeça de Papelão


O homem da cabeça de papelão é daqueles típicos casos de desrespeito ao cinema. Porque, não contente em praticamente aniquilar o elemento humano de seu filme – sucumbindo-o à representação, à alegoria e ao peso plástico da direção de arte -, o diretor Carlos Canela parece travar uma cruzada pelo aniquilamento do próprio cinema. É como se o diretor, ainda insatisfeito com toda a poluição visual proveniente dos cenários absolutamente fakes de seu universo fictício, tivesse ainda de tornar aquilo mais interessante, lançando mão, para tanto, de um dos usos mais vagabundos da linguagem cinematográfica: a ausência de linearidade temporal. Para Canela, ao que parece, a única arma formal do cinema encontra-se aí – porque de resto, tudo o que aparece em seu filme parece muito mais ligado ao teatro e a outras artes performáticas que propriamente ao cinema.

Mas meu maior incômodo com o filme fica mesmo por conta da constituição do universo fictício. Existe ali uma contradição fundamental, na medida em que toda a história narrada gira em torno de uma mera anedota social, enquanto que o filme, por sua vez parece única e exclusivamente preocupado com o cenário kitsch e as atuações performáticas. Meu problema, então, não é com o universo ficcional em si (coisa que vem já do conto em que o filme se baseia, do cronista João do Rio), mas com todo um anti-naturalismo (por isso falava em aniquilamento do elemento humano) que, no fundo, não encontra respaldo narrativo. Isso talvez se deva à própria exigüidade de tempo que o curta-metragem impõe. Brazil, de Terry Gillian, por exemplo, certamente a principal (talvez a única) influência cinematográfica de Canela quando decidiu fazer o filme, conseguia um resultado interessante porque era verdadeiramente um filme sobre a sociedade de controle, não uma anedota da qual se extraía um desfile carnavalesco futurista – com alguma alegoria social, é verdade, como no plano seqüência que abre o filme, mas nada que exceda essa mera alegoria de desfile, sem funcionalidade dramática.

O problema fundamental de O homem da cabeça de papelão está, na verdade, numa visão equivocada, inversa, do processo cinematográfico: é crer que a dramaturgia brotará espontaneamente da concepção visual do filme. Crer que um cenário “interessante” (pra mim, particularmente, nada além de fake e bobo) e de uma piada “atual” (que gire em torno da mentira e da corrupção no cenário político) irão gerar automaticamente um bom filme. Ou, pior ainda, crer que uma montagem descontínua, que confunda temporalmente o espectador, desviará automaticamente a atenção deste para a pobreza dramatúrgica da obra.
(Calac Neves)

sábado, 3 de novembro de 2007

"Um pra um" e “Sete minutos”: a imagem e a moral, ou ainda, o que é um cinema real


Um pra um, de Erico Rassi
Sete Minutos, de Cavi Borges, Paulo Silva, Júlio Pecly
*
Uma das frases mais famosas e geniais de Jean-Luc Godard em relação ao cinema surgiu a partir de uma discussão em torno de Hiroshima mon amour, quando o cineasta foi indagado se determinada reação ao filme, como, por exemplo, o amor ou a impaciência, seria de natureza estética ou moral. Godard respondeu: “É a mesma coisa. O travelling é uma questão de moral”. Se essa frase de Godard já foi dita e redita, algumas vezes surpreende como ela pode ser tão esquecida. Essa declaração expressa tanto a obsessão do cineasta pelo mundo das imagens, como une algo que muitos diretores insistem em separar, mesmo que inconscientemente, como parece ser o caso de Sete Minutos: a estética da moral, como se elas pudessem viver em lugares diferentes e independentes, onde uma imagem é tratada como um reflexo de determinada realidade.

Parece que atualmente há uma onda de filmes que se constroem por causa de um desafio técnico, nem mesmo através deles, mas por causa deles, o que muitas vezes faz com que o filme se torne um evento, e passe a ser um escravo do dispositivo, como se a dificuldade ou as condições em que foi produzido fossem a sua maior motivação. Daí se enxerga uma vontade de filmar algo diferente, inovador, e que contenha um desafio no próprio ato da filmagem. Ironicamente, o plano-seqüência parece em moda, pois o seu principal objetivo era, justamente, ser diferente. Aí está o cerne da problemática desses filmes que buscam o seu diferencial no dispositivo: acreditar que o modo de filmagem é suficiente para dar conta de uma realidade.

Há que se considerar que quando essa realidade é a favela e o tráfico, a questão se complica ainda mais no cinema brasileiro da atualidade. Se a onda sobre os filmes em plano-sequência talvez esteja em seu início, a onda de filmes sobre o tráfico parece estar longe de acabar. Mas por quê? Certamente porque esse é um problema urgente no país, pelo qual se sente alguma necessidade de se relatar. Mas não será necessário buscar atribuir outros olhares a esse espaço? Sete minutos acompanha, em tempo real, a perseguição do traficante PC para um acerto de contas com um rival. Reconhece-se o interesse dos diretores em construir outro lugar para a visão do tráfico, a partir da inserção da câmera em um insólito ponto de vista, ainda que esse outro lugar não tenha a pretensão de ser alguma forma de resistência ao olhar predominante que há para a favela ou para o tráfico. No entanto, apesar do esforço do filme de inserir a câmera onde ela possa construir uma outra situação para o tráfico, a sensação é de que não há outra visão ou condição para esse personagem, mas uma submissão da situação que o filme apresenta ao próprio formato que propõe, o do plano-seqüência e o da subjetiva, que acaba por aprisioná-lo e funcionar como uma camisa de força. Mas essas duas opções formais não são gratuitas: para estar junto ou ao lado do traficante, a subjetiva; para buscar a intensidade do momento da perseguição, o tempo real dos sete minutos, em seqüência, sem cortes. No entanto, ainda que essas ferramentas tragam um desejo dos diretores por uma aproximação do personagem, parece que essa aproximação não é capaz de ser resolvida através do dispositivo, de uma obra que aposta em uma espécie de solução estética para um problema que está muito além dele.

Também porque Sete Minutos me fez lembrar insistente e impacientemente da frase de Godard, um outro filme dessa mesma sessão estabelece relações possíveis a partir do tratamento que dá ao dispositivo, além de trazer a figura de Godard como uma referência para o seu personagem principal, cineasta, que faz cinema pornô experimental. Um pra um também atribui à sua câmera o poder de uma ferramenta, dotada de grande poder na narrativa, apesar das temáticas dos dois filmes serem bastante diferentes, sem nenhuma relação direta desse filme com os sete minutos vistos anteriormente em plano-seqüência. Mas Um pra um não chega a ser um filme que está submetido ao dispositivo. Na verdade, pensar na câmera e na confecção das imagens é o objetivo do filme, mas porque é do fazer cinema que ele fala, ao contrário do anterior, que acaba caindo, quase que inconscientemente, dentro das armadilhas do dispositivo. Sete minutos não parece ter a intenção inicial de falar sobre cinema, mas a forma como os diretores filmam faz com que a discussão seja deslocada para este lugar. Mas seria a esse local que o filme deveria se entregar? Assim, o curta fica dividido entre aquele que quer mostrar, mesmo que no fora-de-campo, e a forma como o mostra, sem se resolver nem por um nem por outro.

Mas, no fundo, há um diálogo entre os dois filmes, pois Érico Rassi quer pensar as condições dessa imagem sem cortes, de uma imagem que traga a verdade nua e crua, como diz, ainda que de forma irônica e cômica, o personagem Ramiro Canibal, o que não deixa de ser o objetivo dos diretores de Sete minutos. Como Godard, Canibal acredita que “o único cinema real é o cinema pornográfico”. Seu cinema pornô presa pelo experimentalismo, luta por ele e faz da sua forma o local ideal para a quebra de paradigmas. Assim, filmar é preciso, ainda que ninguém veja o filme. Já no caso de Sete Minutos ver o filme é essencial e ele é feito para isso. Esse é um cinema de uma única imagem, mas que está ali para estar voltada para todos os olhos e espectadores, já que faz uso de uma imagem que tem um toque da imagem espetacular.

Mas é claro que não é possível levar a comparação entre dois filmes de universos tão diferentes em muitas camadas, mas é possível levar em uma camada essencial, em torno do que é o próprio cinema. Há um movimento semelhante entre eles, pelo bem ou pelo mal, que nos faz pensar onde está a liberdade de se fazer cinema, os lugares possíveis do desafio de uma imagem. Esses são dois filmes que, no fundo, partem do desejo de romper barreiras, só que um acaba por fazê-lo em seu lado técnico e outro acaba por expressá-lo tanto tematicamente quanto em sua forma. Os dois apresentam formas diferentes de se tratar uma imagem no que ela tem de imediata, na própria força de ser uma imagem. Mas apesar de Um pra um se definir como “sem corte; sem mudança de plano; sem repetir o take; sem trocar a fita”, essa câmera que quer dar espaço a um mundo feito de imagens em sua vitalidade não submete as composições dessas imagens a uma questão técnica ou formal.

No fim, ver esses dois filmes em seqüência forma uma pequena fantasia de que um personagem de um filme pudesse dizer algo enriquecedor para o outro. Algo como “foda-se o dolby digital 5.1, foda-se o cinemark, aqui é a verdade nua e crua; isso aqui é cinema pra quem tem estômago. Isso é o que acontece quando se rompem as barreiras e quebram-se paradigmas. Quando o artista tem as suas liberdades éticas e morais”. O dolby e o cinemark aqui são apenas mais uma técnica, que pode ou não ser glorificada. Seria muito bom se essa comparação entre os dois filmes, muito mais do que atribuir maior valor a um do que ao outro, pudesse trazer alguma reflexão sobre o que é o cinema, a sua técnica e os desafios de suas imagens.

Juliana Cardoso

Recreio

Mario Quintana ficaria emocionado. Crianças gaúchas, através do espaço escolar, entram em contato com sua obra e vida. A professora começa a perguntar a elas o que seriam esses tais “pequenos tormentos da vida”. As respostas, as mais variadas, dizem respeito principalmente a seus próprios familiares e a afazeres escolares. Elas lêem em conjunto seus poemas e, a cada descobrir de palavras inventadas por Quintana, uma nova surpresa ao correr aos dicionários e esbarrarem com a ausência destas. Entre os momentos de estudos, as brincadeiras, as zoações, as pequenas paixões. A câmera passeia junto às crianças, corre nos momentos necessários, e deixa clara a cumplicidade e intimidade do diretor com aquele espaço.

Um dos mais belos momentos desse filme e da Curta Cinema é quando a professora blefa e diz aos pequenos que naquele dia não haveria “pátio”, ou seja, recreio, devido ao seu mau comportamento. Após tanta dedicação a uma aproximação ao universo de Quintana, os pequenos discutem com a mestra, tentando colocar seus diversos pontos de vista sobre a bagunça precedente. No fim das contas, eles são liberados e correm, e muito, para a portinha que liga a escola ao seu quintal. É uma das imagens mais belas (além do caráter estético) por conjugar duas questões.

Primeiro, para pensarmos o quanto aqueles pequenos estavam realmente ligados a todo aquele empenho por poesia – estavam mesmo? Não estariam apenas cumprindo obrigações e visando exclusivamente aquele momento do brincar por brincar? De qualquer forma, por mais que nesse estágio da vida Mario Quintana possa ter soado como atividade desgastante e efêmera (ou seja: o poeta como um pequeno tormento da vida dessas crianças), quem sabe num futuro ele poderá fazer todo o sentido... Em segundo lugar, essas imagens polarizam o dentro e o fora da escola. Podemos lê-las como o espaço dos “pequenos tormentos da vida”, que giram em torno da relação entre coleguinhas, e os “grandes tormentos da vida” que esses guris muito provavelmente encontrarão em algum futuro estágio de suas existências.



"Pequenos tormentos da vida" está na sessão Competição Nacional 6.



(Raphael Fonseca)

Morte

A morte, como sempre, aparece como tópico que ronda as poéticas de alguns filmes do festival deste ano. O interessante é pensar como que cada diretor irá dialogar de forma diferente com uma das únicas certezas que temos sobre nós (clichê, mas verdade).

“Verão” surpreende já pela segurança com que as imagens são apresentadas. Trata-se de um filme universitário, uma produção da FAAP que diferentemente de muita coisa produzida em escola, não apresenta nem um descaso para com a realização da obra, nem uma vontade de ser monumental e maior do que o espaço da tela de projeção. Ele segue o caminho do meio – a grandiosidade na simplicidade da construção dessas imagens. E também nas atitudes desse senhor, que em pleno (aparente) século XXI ainda consegue guardar dinheiro dentro de uma santa. Nessa obra, a morte é o mote. Esse simpático e ao mesmo tempo triste homem vive para morrer. O sentido de sua vida é justamente essa espera do grand finale, merecedor do melhor caixão possível. É interessante pensar que por mais que algumas adversidades o perpassem, seu objetivo principal não se modifica e sua vida faz um movimento circular.

Falando nisso, “Circular” trata das pequenas mortes. Aqueles momentos que gastamos com os mínimos gestos da rotina – o escovar os dentes, o trocar de roupa, os cigarros fumados. Os cigarros, nessa obra, são unidades de tempo. Atenção merece ser dada às angulações procuradas pela direção a fim de nos apresentar estas imagens. Em dados momentos paira o silêncio nesse ambiente fechado em que o único personagem parece estar rodeado por ócio. A própria qualidade da imagem filmada, com suas tonalidades neutras, contribui para um diálogo do cinza desse interior, com o cinza logo dali de fora, desse mundo de concreto que é São Paulo. Somando a isso, há a utilização de cartelas que visam dar as definições denotativas, enciclopédicas, daquelas atitudes dos personagens. Estas acabam por contribuir com uma maior idéia de diminuição de qualquer relevância daquelas atitudes. Elas não significam nada perante os significados listados e trancados pelos dicionários. Nesse filme, diferente, talvez, do “Moradores do 304”, sinto esse homem pequenino perante a cidade e perante o próximo.

Por fim, mas não menos importante, as relações entre a morte e os habitantes de uma pequena cidade na Bahia. Talvez uma palavra que bem se adequa a “Sentinela”, seja “rugas”. As entrevistas são realizadas, principalmente, com antigos habitantes dessa cidade, inseridos nessa tradição da vigília dos mortos. A opção pela utilização de imagens primordialmente em preto-e-branco e a forma como o fotógrafo lida com essas cores criam uma textura que mais parecem gravuras em água-forte – algo que remete a Goya e mesmo à sua proximidade com a representação de temas populares. Como se as rugas desses senhoras e senhoras fosse as linhas de construção dessas gravuras. Dos três filmes aqui pinçados, por se tratar também de ser um documentário, nos deparamos com uma morte literal e em como as pessoas ao redor da falecida reagem. Até mesmo imagens da senhora, enquanto viva, são mostradas. Trata-se, portanto, de várias mortes enquadradas no mesmo curta-metragem: a morte daqueles momentos das entrevistas, guardados dentro do material sensível da película, e a morte dessa pessoa, sentida no campo da sensibilidade de seus familiares.

Três sessões diferentes. Três curtas. Três diretores. Três propostas artísticas igualmente contrastantes, mas tocantes no que diz respeito a uma representação da morte e de seu impacto na contemporaneidade.



"Verão" está na sessão Competição Nacional 5. "Circular" está na sessão Competição Nacional 7. "Sentinela" está na sessão Competição Nacional 8.


(Raphael Fonseca)

A Curva


O advento do vídeo no processo de desenvolvimento de câmeras caseiras aumentou a popularidade desses equipamentos na mesma proporção em que re-colocou uma questão: o que fazer com essa possibilidade de concepção da imagem tão acessível? De que serve, no final das contas, registrar o real? Nem todos os que possuem equipamentos deste tipo desejam ingressar no mundo artístico da produção audiovisual, muito pelo contrário. São, na maioria das vezes, apenas pessoas fascinadas pela possibilidade do registro de si e do mundo, pessoas para quem a captura do mundo em tempo real, em sua condição de movimento, relaciona-se muito mais a questões de afeto e memória que a questões artísticas. Cria-se assim todo um frouxo (e imenso) contingente de produtores de imagem que caminham pelo mundo sem um norteador maior que os oriente, apontando suas câmeras pessoais para qualquer coisa que pareça interessante.

De que fala A curva, festejado curta de Salomão Santana? Fala de um período, do surgimento do VHS, ou pelo menos de sua chegada à cidade em que se passam as imagens apresentadas, Juazeiro do Norte. Fala de um novo tipo de relacionamento que daí em diante se cria, conjugando em simultâneo aquele que filma (o produtor da imagem), aquele que é filmado (a matriz) e seu duplo eternizado no vídeo. Assim, se nos dois primeiros planos do filme acompanhamos tentativas de ajuste de foco de um cinegrafista na beira de uma estrada (como que a descoberta da possibilidade de se manipular o mundo através da câmera), no resto do filme nos focaremos bem mais no outro lado dessa relação, naqueles que são filmados e em suas reações diante da câmera.

O Rapha já falou muito bem desses instantes das pessoas registradas que são compilados pelo filme – instantes dedicados “ao nada, ao silêncio, à introspecção, a aquele vulgo olhar vazio”. Eu acho que é por aí mesmo, que boa parte do filme trata exatamente disso. Mas há também a forma com que aquilo tudo é trazido. Eu não tive acesso ao material bruto que o Salomão editou. Então a única coisa que eu posso depreender formalmente dali é uma proximidade enorme entre aqueles quadros apresentados com uma modalidade de captura do mundo bem mais antiga, a fotografia. Cartier-Bresson tem um depoimento em que diz que com seus retratos procura capturar o que chama de “instante interior” de cada pessoa retratada. Não estaria A curva procurando um processo semelhante?

O uso das possibilidades da câmera, aqui, é rudimentar (não há praticamente travellings ou movimentação dos corpos), e isso nos faz pensar ainda mais no uso da câmera de vídeo como uma mera extensão do ato fotográfico. Por isso que dizemos que é um filme sobre um relacionamento nascente – é esse não saber o que fazer com a câmera associado a um não saber o que fazer diante dela. E há toda a nostalgia presente nas linhas do VHS, uma nostalgia que em pouco tempo será comparável à causada pela imagem em Super-8.

A curva, podemos dizer ainda, é um filme sobre a virada. É a curva que faz o mundo com o nascimento do vídeo, com a abundância de imagens que daí em diante serão captadas e veiculadas em cada vez mais mídias – e também com um novo tipo de relacionamento que brota daí, conjugando homem e imagem. O mundo é apresentado a sua 4º dimensão, que ganha corpo na virtualidade, no audiovisual.

(Calac Neves)
A Curva está na Competição Nacional 7.

Cabaceiras, de Ana Bárbara Ramos


Os primeiros planos de “Cabaceiras” (2007) mostram a pequena cidade nordestina que dá título ao filme. Estas imagens, no entanto, não são planos gerais da praça central do lugar, ou do casario antigo. Em planos detalhe, vemos guarda chuvas, uma sandália de plástico que bóia numa poça d´água, um pouco do comércio. Para apresentar Cabaceiras, então, a diretora faz uso de uma reportagem de TV. Ficamos sabendo que a cidade tornou-se conhecida por abrigar as filmagens de longas metragens brasileiros como “O Auto da Compadecida” e “Cinema, Aspirinas e Urubus”. Os personagens do filme são moradores de Cabaceiras que participaram, de alguma maneira, das gravações destes filmes. Falam de si, da cidade e da experiência que viveram. A diretora, inclusive, empresta a câmera a eles, para que filmem a região à sua maneira.

A tentativa de produzir imagens diversas das que comumente se encontram em documentários, utilizando diferentes suportes – fotos, um aparelho de TV filmado – é um esforço interessante do filme. Os personagens também são apresentados através de suas carteiras de identidade, de fotos de família. O formato tradicional de entrevista, em que o diretor fica atrás da câmera e o personagem fala diante dela, não é praticamente utilizado, à exceção de uma das personagens, que dá um longo depoimento sobre sua visão da cidade. Para ela, Cabaceiras é como uma cabaça: por fora parece seca e dura, mas por dentro está cheia de sementes, que são seus habitantes.

Neste momento do filme, a diretora parece ter encontrado a “tese” que gostaria de explicitar, e toda uma gama de possibilidades de realização cai por terra. A imagem que se segue é surpreendentemente óbvia: os quatro moradores serram uma cabaça até verem cair dela suas sementes. Os personagens, então, afirma e reafirmam: os filmes rodados na cidade mostram apenas a seca e a pobreza de Cabaceiras. Uma cartela ao final não quer deixar dúvidas ao espectador, e apresenta a lição, algo como “ao contrário do que disse a reportagem da Band, a estrela de Cabaceiras não é o bode, mas são seus habitantes”.

Embora adequado, o esforço de representar Cabaceiras de uma maneira diversa daquela realizada até então também é problemático. Porque os personagens quase não aparecem, se eles são a riqueza da cidade? Quanto ao dispositivo de entregar à câmera aos moradores, já não foi demasiadamente empregado no documentário brasileiro? O que justifica sua utilização? Seria a crença em atingir alguma “verdade” a partir de imagens supostamente “puras”, feitas pelos “nativos”, sem intermediações?

Para além de uma interessante discussão sobre representações do Nordeste, infelizmente desperdiçada, cabe perguntar que benefícios a realização de produções cinematográficas pode – ou poderia – ter trazido à região. Será que não promoveu algum estímulo ao desenvolvimento econômico? Não teria levado alguns dos habitantes ao cinema? Embora não seja esse o debate que o filme quer promover, talvez seja ingênuo transformar produtores e diretores de cinema em algozes da imagem.

Rita Toledo

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Os artistas e as cidades


Na sessão no Odeon dedicada à sua obra, Antonio Carlos da Fontoura afirmou que uma das razões que o motivou a realizar “Ver Ouvir” (1966) foi o fato de que Roberto Magalhães, Antonio Dias e Rubens Gerchman eram alguns dos poucos artistas com quem ele podia, em um vernissage, falar e ser ouvido.

A beleza desta construção tão simples revela, na realidade, a elaboração de um dispositivo generoso: Fontoura quer conversar, quer permitir que seu cinema seja invadido por outras linguagens, outros discursos. Sua orientação é abrir-se ao outro, encontrar o artista “documentado”. Em “Ver Ouvir”, especialmente, a relação entre a obra filmada e o ato de documentá-la orientam, de diferentes formas, a realização dos filmes.

Dividido em três partes, “Ver Ouvir” apresenta o retrato dos três artistas. Roberto Magalhães é o primeiro. A idéia de espelho permeia toda a construção imagética do curta. A deformação das formas nas pinturas e desenhos de Magalhães rima com sua figura também deformada, espelhada. Engajado na elaboração do filme, ele pinta o rosto com o colorido de seus quadros, caminha pela cidade. Presentes na narração do artista, os objetos da infância também ecoam em suas obras e são sugeridos pelas imagens em que ele transita por um parque de diversões.

Na parte sobre Antonio Dias, o universo do artista ganha materialidade através da performance, insere-se no filme a partir de seu corpo alterado. Os planos de Fontoura tornam-se imagens possíveis da obra de Antonio Dias, preservam sua dubiedade de sentido. Podem ser mágicas, coloridas; mas também irônicas, quase obscuras – como um homem que transita pela cidade com uma máscara de gás. “Coração para amassar”, obra de 1966, aparece vibrante, emoldurada por uma fotografia que acentua as cores quentes. Afetivo e crítico, Antonio Dias revela: “é preciso muita força para não ser idealista”.

Em seu retrato de Rubens Gershman, mais uma vez o artista sai do estúdio para as ruas. Aqui, literalmente, a obra é colocada em meio aos passantes. Diferentemente dos outros dois blocos, desta vez não é o pintor que narra, mas as pessoas, nas ruas, que falam livremente sobre a obra. A arte simboliza? Representa? O que tem a ver com as coisas e personagens da cidade – manequins de uma vitrine, jornais, anúncios? Que histórias quer ou não contar? Em que medida se alimenta do povo e de seu imaginário? Mais uma vez, o artista vira personagem que constrói o filme com o cineasta.

Outros dois curtas de Fontoura, exibidos na sessão, registram obras de artistas plásticos. O belíssimo “Ouro Preto e Scliar” (1969) tematiza a relação do pintor com a cidade mineira de Ouro Preto. Aqui, importam mais as formas e cores, pouco os seus habitantes. Nas palavras do pintor, que narra o filme, a cidade é “lapidada pela ignorância”. Casas e telhados invadem as telas do artista, reveladas pelo olhar sensível de Fontoura. Os potes de tinta têm as cores das ruas – ocres, vermelhos, brancos. O artista aparece pintando sob a luz que entra por uma grande janela, ou em refeições entre amigos. O ritmo calmo da cidade orienta o tempo dos planos e permite a total imersão no processo de trabalho de Scliar.

Em “Wanda Pimentel” (1972), Fontoura parte de fragmentos da obra da artista plástica para tecer pequenas “narrativas” visuais. Os objetos presentes nas pinturas – secador de cabelo, depilador, pasta de dente, liquidificador – também se encontram fora da tela, no dia a dia de Wanda. Aqui, não há falas – mas os sons e ruídos dos objetos. Wanda fuma, lê uma revista, espera. Das formas da casa, passamos às urbanas. Instalações da artista trazem ralos, bueiros, esculturas que sugerem prédios. Construída a partir da arquitetura do cotidiano, a obra de Wanda ganha o belo recorte de Fontoura, que pontua com delicadeza a solidão que ela sugere.


Rita Toledo

Fata Morgana (Jeroen Kooijmans, 2006)


Em Fata Morgana, um único plano recorta a paisagem de um lago cercado de relva e junco. A luz do sol reflete na água e denuncia o movimento na superfície do lago. O mesmo ocorre com a relva, que se agita com a ação do vento. Em algum momento durante esses dois minutos de filme, a paisagem iluminada cede lugar a uma escuridão repentina e o sol passa a brilhar de forma diferente. Eis que a escuridão vai embora tão depressa quanto chegou, e tudo volta ao normal. Ou não. Apesar da conotação fantástica e sobrenatural que quer dar à luz, Fata morgana faz lembrar as vistas dos irmãos Lumière. Um retorno ao olhar deslumbrado com as possibilidades da câmera, enquanto aparelho capaz de capturar o mundo.

Em uma busca que o aproxima não apenas aos inventores do cinema, como aos pintores impressionistas, o diretor Jeroen Kooijmans realiza mais um estudo sobre o comportamento da luz e sua influência sobre as coisas visíveis. De que forma a mudança de luz modifica a paisagem? A abertura do plano possibilita que o olhar do espectador percorra livremente a superfície do quadro, buscando o seu objeto de interesse sem qualquer influência externa. Um exercício de atenção voluntária. Resgate das imagens realizadas quando da invenção do cinema, resgate de uma noção do que a câmera é capaz de capturar quando posta diante da natureza, diante do mundo.

Dois minutos depois, o filme termina e não há créditos. Sequer sabemos se se trata mesmo de um filme ou de um erro de projeção. Fatalmente esquecível no meio de tantos outros, por isso a minha vontade de recordá-lo. Uma câmera diante de uma paisagem, capturando os movimentos da natureza. E só.
(Alice Furtado)
Fata morgana está na competição internacional 6.

Balada do Vampiro


Fazer um filme baseado em uma adaptação literária sempre traz muitos desafios ao realizador, já que além de todos os deveres que ele precisa cumprir, ainda há uma alguma necessidade de se manter o espírito da obra literária, ainda que esse espírito nada traga da noção de fidelidade à obra original, como essa noção já foi tão problematizada. No entanto, por mais que se queira abandonar a referência à literatura, é comum que ao menos uma fatia de expectativa se crie para a recepção desses filmes. No caso de um escritor que faz de sua obra um terreno para o desenvolvimento de submundos e das facetas marginais do homem, como é o caso de Dalton Trevisan, isso se torna ainda mais complexo, já que a sua obra tem como premissa um desrespeito e uma provocação aos valores e bons comportamentos da sociedade.

Balada do Vampiro prepara um terreno ainda mais propício para essa cobrança que se faz a um filme que se baseia na literatura, pois não apenas se inspira na obra de Trevisan, como acompanha um dos seus mais conhecidos personagens: Nelsinho, o Vampiro de Curitiba. O filme traz a sua referência literária de forma aguda, e mesmo que não se conheça a obra de Trevisan, entende-se o mundo do qual ele parte e do qual alimenta sua escrita. No entanto, a base que estrutura esse vampiro lúgubre, solitário e desejoso, acaba por se manifestar no curta mais como um esboço, com poucas faces e delineações do personagem. Se há uma característica presente nos personagens de Trevisan são as suas múltiplas vozes, violentas ao mesmo tempo que inofensivas, taradas ao mesmo tempo que solitárias. Os diretores Estevan Silveira e Beto Carminatti reconhecem e constroem tal multiplicidade de vozes, mas elas parecem se expressar mais através de uma narrativa desenfreada do que no desenvolvimento do personagem-título. Uma das conseqüências para essa falta de camadas do personagem se reflete na ausência de uma atmosfera sombria, que estão nas palavras de Nelsinho, mas que não se enxergam em sua imagem. Nelsinho deixa um pouco de ser vampiro, esse ser de tantas imagens e impressões, que pertence a um universo soturno e que vê o mundo de uma forma diferente.

Em um texto de José Carlos Brandão, o escritor diz que se permite falar mal de Dalton Trevisan porque ele é o seu escritor predileto. Assim, esse modo de falar mal seria muito mais por uma admiração e amizade. Talvez só assim seja possível se entregar profundamente a personagens que amamos, a escritores que tanto admiramos. Não falta dedicação dos diretores ao seu objeto de filmagem, mas talvez falte esse saudável desrespeito e possibilidade de questionar uma obra tão admirada.

No entanto, há um caminho no qual os diretores conseguem conceder uma certa liberdade ao seu filme. O que falta em Nelsinho e em seu sombrio mundo se manifesta no modo como os diretores filmam as mulheres, e é nesse aspecto que não só eles se aproximam de Trevisan, mas, o que é mais importante, é como eles mais se aproximam do seu personagem, que estava tão distante. É nessa proximidade entre personagem e direção que se constrói parte do que dá legitimidade ao cinema. Em sua maneira de mostrar as mulheres, os diretores as filmam como homens excitados e tarados, como é o personagem que eles acompanham, vampiros de todos os pescoços. Ali eles se deliciam com mulheres das mais variadas formas, em planos que acompanham o seu andar e o movimento do sexo em seus corpos. É no olhar para todas aquelas mulheres que o filme vai adiante e se liberta um pouco de Trevisan, autor que os diretores parecem tanto admirar. Como se a virilidade tivesse tomado conta deles diante daquelas imagens e os impulsionasse. Provavelmente sim, pois aí o filme encontra a maior vitalidade desse solitário vampiro.
Juliana Cardoso

"Falta do Papai", de Moon Molson


Pessoalmente, tenho uma queda indisfarçável pelos clássico-narrativos. Quando topei entrar na cobertura crítica de um festival de curtas, sabia que eles seriam raridade entre filmes experimentais, ficções e documentários de linguagem mais arrojada. Afinal, como eu já havia escrito num texto anterior postado aqui no blog, o curta-metragem abre espaço à essa experimentação, até porque é um universo mais livre que o do longa-metragem. Alguns filmes nessa linha têm me conquistado e rendido experiências agradáveis. Mas, provavelmente pela identificação maior que tenho com os clássico-narrativos (o principal objeto de meus estudos), é neles que acabo prestando mais atenção.

O que tem me acontecido durante o Curta Cinema é algo curioso. Os clássico-narrativos, documentais ou de ficção, vêm acompanhados dos filmes de linguagem mais moderna (“moderna” não apenas no sentido de “atual”, mas do próprio cinema moderno do pós-Segunda Guerra – afinal, não foi com a nouvelle vague francesa que virou moda subverter a linguagem clássica dos filmes americanos?) dentro das sessões onde estão agrupados. A comparação inevitável entre uns e outros, em termos de estética, linguagem e narrativa, faz eu me perguntar se o filme clássico-narrativo soube passar seu recado suficientemente bem para que tenha valido a pena escolher esse caminho. O curta de caráter mais experimental, se não consegue fazer isso, às vezes se salva por algum artifício estético que diminui o fracasso por parecer interessante. Mas o clássico-narrativo não tem essa desculpa. Sinceramente, começo a pensar que a linguagem clássica num curta-metragem é uma opção mais corajosa do que inventar moda. Afinal, têm-se só alguns minutos para contar a história.

Dentro do que já vi no festival, posso dizer que muitos clássico-narrativos não passaram no teste e são apenas insossos. “Falta do Papai” (“Pop Foul”, EUA, 2006) não está entre eles, pois é um filme impecável. Clássico-narrativo convicto, calcado no american way of life de periferia, é óbvio que agradou os ianques, a ponto de ter levado o Oscar de Filme de Estudante. Ganhou também o prêmio de Melhor Curta de Estudante no Festival de Curtas de Woodstock e o HBO de Curtas no Festival Americano de Cinema Negro. A consciência negra tem sido bastante valorizada (na mesma sessão, o documentário “De Acordo Com...” lembrou o preconceito na sociedade norte-americana). Black is beautiful e está na moda. E isso tem tudo a ver com cinema.

O protagonista é um garoto que participa da Liga Júnior de beisebol. Voltando para casa depois de ter perdido um jogo, ele testemunha o pai apanhar de um sujeito mal encarado sem reagir. Pai e filho combinam de não contar nada à mãe do garoto. Lendo o título antes de ver o filme, ele pode remeter à mais batida das relações entre adultos e crianças no cinema: um menino que sente falta do pai, ausente por algum motivo. O português fica mais claro se prestarmos atenção no título original, “Pop Foul”. “Pop” é “papai” na gíria americana; “foul” é falta, jogada não permitida no futebol. “Falta do Papai” se refere, então, ao deslize que o pai comete com o filho na história. Uma falta que existe sob o ponto de vista do garoto, mas não necessariamente do espectador.

Enquanto voltam para casa depois do jogo, pai e filho conversam sobre como se portar frente à derrota (e à humilhação, por conseqüência). Desde a primeira seqüência, quando está no campo já vazio batendo na cerca, o garoto mostra uma fúria indomada. Essa agressividade contrasta com outra característica do menino: ele nunca consegue conter o pranto quando está frustrado ou triste. No caminho, o pai diz ao filho que ele deve aprender a controlar as lágrimas, a ser forte e reagir quando está por baixo. É fácil compreender a decepção do menino quando, logo depois desse discurso, seu pai é abordado por um conhecido que o agride sem que ele reaja ou se esforce verdadeiramente para se defender. Para o garoto, que havia acabado de dizer ao pai que sua força é um traço hereditário (e o adulto responde que foi algo que ele puxou da família materna), foi um golpe.

A incapacidade de reação é só a primeira parte da falta que o pai comete com o garoto. A mãe pressiona o menino para saber onde o marido conseguiu o olho roxo e ele inventa uma desculpa. Mais tarde, o garoto descobre que, sem combinar, ele e o pai contaram à mãe a mesma mentira e se vangloria disso. Mas o pai, que tinha sofrido uma humilhação na frente da criança para quem deveria servir de exemplo, briga com ele e diz que não precisa da sua ajuda. O garoto, mais uma vez, chora e tem um acesso de agressividade. Já que sua mentira não tinha consertado a situação, ele resolve contar a verdade à mãe, que o repreende por isso. Decepcionado e sem entender os adultos, o menino, no auge de sua fúria, desconta no cachorro. O animal passa a ser, então, o que o garoto era: um inocente sem compreensão, afetado pelo erro e pela raiva de outro(s).

Quando digo que a falta que existe aos olhos do menino não é obrigatoriamente compartilhada pelo espectador, é porque somos capazes de compreender também o ponto de vista dos pais. E, no fundo, toda a tensão acontece pelo conflito entre os pontos de vista da criança e dos adultos. É uma idéia simples, mas repleta de sentimentos sutis. O filme é impecável justamente por ter um domínio perfeito da narrativa, além de trilha sonora e fotografia irrepreensíveis. Os primeiros planos do curta, onde o espaço vai sendo mostrado (a ambientação da história logo na seqüência de abertura é comum desde sempre nos clássico-narrativos) me chamaram a atenção por serem especialmente “artísticos”. Com uma saturação das cores belíssima e os holofotes do campo enquadrados de um ângulo diagonal, são como um luxo de avant-garde dentro do cinema clássico. Os atores, todos negros, são intensos. Sempre tenho a impressão de que atores negros são mais passionais e sabem tomar conta da tela.

Este filme é um prazer e uma dor. Sabe como quando você é criança e vai brincar com o amiguinho mais rico da turma? Ele tem os brinquedos mais caros, a casa mais bonita, vários empregados para paparicá-lo. Pode nem ser o mais inteligente, mas para ele tudo é mais fácil. O filme é exatamente isto: em última instância, é a evidência de que dinheiro faz, sim, uma grande diferente na realização cinematográfica. “Falta do Papai” é um CURTA UNIVERSITÁRIO norte-americano. Aqui nos nossos trópicos, se o brinquedo velho estraga temos que continuar filmando com ele – mamãe não tem dinheiro para comprar outro. E isso não acontece somente na produção universitária – pergunte a um cineasta perto de você. O abismo técnico que há entre o cinema brasileiro e o norte-americano é fatal. Não sei quanto à vocês, mas, para mim, isso é frustrante e quase desencorajador.


Isabella Goulart

“Falta do Papai” está na Competição Internacional 7.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Um ramo


O melhor de escrever sobre um filme e praticar o exercício da crítica está dividido em dois diferentes momentos: primeiramente, no tempo e na dificuldade que se coloca entre aquele que escreve e o filme, a partir de uma tentativa de compreender o que está no cerne do seu objeto de análise e, num segundo momento, a possibilidade de confeccionar um olhar sobre a obra e de se deparar com surpresas e indagações no ato da escrita, a partir da prazerosa constatação de como podemos dialogar mais profundamente com um filme quando nos dedicamos a ele. No entanto, a passagem do conhecimento do objeto à sua interpretação não garante que um diálogo se resolva entre a escrita e o filme.

Um ramo, de Juliana Rojas e Marco Dutra, é um filme sobre o qual escrevo sem saber ao certo o que significa para mim. Clarisse encontra um ramo em seu braço. Essa inusitada invasão se alastra pelo seu corpo e a personagem terá que lidar com essa invasão do desconhecido, tanto consigo mesma, o que é inevitável, como através do olhar do outro, personificado no filme por diversos personagens, como o marido, a empregada ou o atendente do supermercado.

Mas o que é esse desconhecido? Algumas pessoas relacionam o filme ao realismo-fantástico. No entanto, o filme parece estar em busca de um outro lugar, entre o mundo real impregnado de imaginação do realismo-fantástico e a realidade crua e direta do cotidiano, como é a apresentação dos diretores para a primeira imagem que o filme traz do ramo, logo após os créditos, uma imagem direta e imediata da vida que toma Clarisse. Se por um lado os diretores sublinham a relação do realismo-fantástico com a vida cotidiana, feita de fatos violentos e sem razão ou sentido minimamente definidos, por outro lado o filme também faz um retrato do desconhecido, não necessariamente ligado a uma doença, mesmo que sem nome, mas a um desconhecido do dia à dia, uma impossibilidade de enquadramento a determinados padrões da sociedade. Os sentidos que o realismo fantástico trouxe para as artes parecem se localizar mais nos elementos distribuídos de forma sutil ao longo do filme do que na personagem ou no filme como um todo, a partir de elementos esparsos, como nas plantas que invadem o aquário, ou o pássaro que entra na casa de Clarisse, anunciando a invasão dos mistérios da natureza em sua vida. Localizar-se nesse lugar entre o desconhecido e a realidade do cotidiano, não sendo nem um nem outro, é o que dá ao filme o seu lugar mais especial.

No entanto, o problema aqui é que, de algum modo, o desconhecido parece se justificar pelo estranho, pelo surreal, por ele mesmo. Nem mesmo os movimentos surrealistas se justificam pelo o que são de inusitados, mas sim a partir de uma evidência do que move aquelas imagens, do que fazem com que elas tenham sido criadas. Mas o que move Juliana Rojas e Marco Dutra? Esse talvez seja um ingrediente da imagem pelo qual sempre nos sentiremos imbuídos a procurar.

Em alguns momentos a relação da personagem com os outros elementos do filme que parece sem lugar, entre a seriedade e o sofrimento que os diretores dão à personagem principal e uma estranheza trágico-cômica dos personagens que estão a sua volta, como os médicos que cuidam de Clarisse ou a inconveniente mulher do supermercado, que a analisa a partir de todos os ângulos. O fora do comum se alastra e parece ganhar variados lugares na narrativa, mas ele também adquire valor nos momentos de interesse dos diretores, localizados na seriedade com a qual retratam Clarisse em contraposição à futilidade ou ignorância que acompanham os outros personagens.

Assim, incomoda esse estranho que pode ser explorado sem limites e sem maiores motivações. Isso também faz com que o corpo de Clarisse venha a ser cada vez mais dilacerado, e penso se esta insatisfação que tenho com o filme responde mais a uma falta de resistência pessoal a essas imagens, ou se realmente há uma exploração do corpo da personagem como forma de chocar o espectador. Também fico entre as duas respostas, mas a ênfase que os diretores dão à violência que recai sobre este corpo parece um pouco gratuito no filme, como se estivesse presente mais por uma força das estranhezas do mundo e dos ramos que tomam Clarisse, do que pelo o que isso pode representar para a personagem. Até quanto um filme vale por sua técnica e pela inovação, estranheza e originalidade de suas imagens? Parece que é isso que me incomoda em Um ramo: a forma como os diretores exploram o corpo deturpado da personagem, a quantidade de gazes, a quantidade de sangue, a quantidade de ramos, que deixam de ser um só, como se a violência dessas imagens fosse necessária e desse conta do que se passa com Clarisse; não dá.

Certamente Um ramo é um curta-metragem que merece todo o destaque na produção contemporânea, mas isso não o torna uma obra isenta de questionamentos. Para além de toda a importância do filme, Um ramo deixa muitas perguntas, o que indica a quantidade de camadas em que o filme constrói sua existência, mas que também é o que introduz o meu incômodo em relação a ele. Por que a personagem que provoca essa estranheza já traz um aspecto frágil, como um terreno previamente preparado para o surgimento dessa estranha natureza? Por que a mãe da aluna que Clarisse encontra no supermercado é uma mulher retratada como fútil e inconveniente e que se veste e se comporta como o oposto dela? Por que os ramos precisam se alastrar pelo corpo da personagem para demonstrar o quanto aquilo a invade e está fora do seu controle? Por que a cicatriz que o atendente do supermercado vê parece estar ali muito mais para que ele a veja do que como uma ferida que a personagem carrega em si e que lhe instaura um medo e inevitabilidade diante do que a vida pode trazer? A ferida é dela. O exagero dessas imagens fazem bem ao filme? Não sei e não saberia responder a todas essas perguntas, que são pontuais e específicas, mas que mais uma vez me tomam diante de Um ramo.
Juliana Cardoso

Ao infinito


Conversando com um amigo sobre esta experiência de escrever críticas para o festival, este me enviou via e-mail um trecho de um certo autor (cujo nome ainda não sei), versando sobre a experiência da crítica de cinema. Ele diz: "... os criticos de hoje perderam a capacidade de se espantarem com os filmes, de não saberem o que dizer. Enquanto o critico não se der a possibilidade de ver algo além dos seus sentidos, não haverá crítica". Faço dessas palavras as minhas no que diz respeito a essa sensação de "não saber o que dizer" sobre um outro curta presente na Competição Nacional 6, "Convite para jantar com o camarada Stalin".


Por onde começar? Não sei. Assim como também não sei apontar as causas exatas desse filme ter mexido tanto comigo. Acho que é uma confluência de fatores e pequenas opções tomadas pelo diretor. São poucos planos – cerca de sete. Todos muitíssimo bem construídos, com imagens que são monumentos a toda uma extensíssima tradição da imagem, seja em movimento, seja ela estática. Em alguns momentos eu parecia estar vendo um Vermeer, só que sem aquela possibilidade de leituras dos quadros do holandês em que a luz ressalta a vivacidade das cores. Nesse vídeo o toque de Vermeer está no trabalho com as janelas, na experiência com um observar das ações com toques de voyeurismo. Estou escondido, observando aquele arrastar de vida daquelas duas excepcionais senhoras. O silêncio reina. Uma usa camisa branca, a outra está vestida de preto. A cada pequeno movimentar delas sentimos a morte chegando, lentamente.


E o auge dessas imagens: o momento do abraço. Aqui, diferente da minha experiência com "Sensações contrárias", quem desmoronou fui eu. Que direito eu tenho de observar esse contato tão íntimo entre essas duas pessoas? Ainda bem que não fica claro que palavras são aquelas que saem de suas bocas. Se elas fossem claras a mim, ficaria péssimo por ter invadido ainda mais a sua privacidade. Coroando tudo isso, aquela música com pitadas sonoras de rádios antigos. Onde fica essa casa delas? Em algum lugar perdido no tempo e no espaço, rodeado por ruínas, rodeado por sonhos não alcançados. Apenas se assiste ao tempo. E elas persistem, elas ainda querem viver. Elas tem uma à outra - e tem a mim.


Seria eu o "camarada Stalin"? Já fui voyeur e tem um tal lugar na mesa não preenchido... Por outro lado, como elas são apenas imagem em movimento, construção de um universo através de luz, eu nunca poderei sentar naquela mesa junto a elas. Meu convite está restrito a observar e a venerar esses instantes tão íntimos que perpetuam a amizade dessas senhoras, ao infinito. Como eu gostaria de estar lá e abraçá-las também. Como eu gostaria de provar aquela carne que elas cozinharam, juntas, enquanto estavam abraçadas. Porém, a mim (mero espectador) cabe apenas agradecer (e muito) ao convite deste jantar e, infelizmente, recusá-lo.


(Raphael Fonseca)


"Convite para jantar com o camarada Stalin" está na sessão Competição Nacional 6.

Peiote, de Cao Guimarães


Peiote é o nome de uma planta alucinógena utilizada por índios mexicanos em rituais de espiritualização. Com seu filme de mesmo nome, rodado no México, Cao Guimarães parece querer propor ao espectador um tipo de experiência similar, quase transcendente mesmo. Uma tentativa de descobrir na imagem ordinária aquilo que há de espantoso, de deslumbrante – na física dos corpos, nas cores saltando na tela, no som que, no ato da apreensão mental do filme, permeia tudo aquilo. Um deslumbramento que só é possível através de um relacionamento intenso com a dimensão sensível dessa imagem, da contemplação siderada do objeto apresentado. Ou do uso de algum tipo de alucinógeno.

Falando do filme propriamente dito, é possível que a referência explícita ao peiote encontre bem mais respaldo na narrativa proposta pelo diretor. No filme, acompanhamos um garoto que dança incansável em meio à multidão de algum tipo de festa ou apresentação folclórica. O garoto veste roupas comuns, além de um gorro, enquanto que os outros – todos adultos – estão fantasiados – há uma motivação indígena em suas fantasias, mas a riqueza e o preciosismo delas denunciam a farsa, a representação. Trata-se exatamente disso, tanto para o garoto quanto para o espectador: alucinar-se com a representação. Rodeado de signos, cores, gestos, em suma, formas de representação, o garoto verdadeiramente pira.

Se veiculado no Youtube sem a assinatura de seu diretor, o vídeo provavelmente receberia um nome como “garoto chapado dança loucamente”. E o curioso é que, no fundo, o filme é isso mesmo, precisamente. Só que, ao que parece, não é o peiote o responsável pela situação do personagem, ainda que Cao Guimarães, com um quê de ironia, sugira isso no título. É a própria vida acontecendo ao seu redor, mascarada, representada, lúdica. É essa não distinção tão característica da infância entre o que é real e o que não é, o que é fantasia, representação. A naturalidade do vídeo é tremenda, ficando difícil duvidar dessa espécie de conexão transcendente, eufórica, entre o garoto e as imagens que bailam à sua volta.

Mas o que torna o filme especial não é só essa naturalidade com a qual o próprio real se traveste. É também, lógico, a forma de Cao Guimarães filmar, sempre respeitosa, câmera na altura do garoto, trilha sonora acrescentada no compasso do personagem, na medida do possível. É, no fundo, a repetição de algo que podemos identificar em vários trabalhos do diretor: uma habilidade na composição dos planos e na manipulação da imagem que, todavia, jamais serve a um virtuosismo auto-centrado, mas que procura proporcionar um processo de expansão da experiência contemplativa daquelas figuras registradas – os personagens do filme. Isso já estava presente no fabuloso Da janela do meu quarto (filme num certo sentido bastante parecido com este, pela preocupação em situar fisicamente o espectador, que assumirá a condição de observador de um evento), e retorna aqui quase com a mesma intensidade, a despeito da precariedade do registro.

Dessa forma, Peiote, ainda que soe como um mero registro de viagem, representa a continuação de um cinema documental que, longe de querer ser o próprio real, procura mediar a relação entre o espectador e o mundo que registra. A mise-en-scène – os efeitos de fotografia, tratamento de imagem, acréscimo de trilha sonora – potencializa esse real que, à medida que vai se prolongando – e ele sempre irá se prolongar pois este é um outro vetor dos trabalhos de Cao Guimarães -, constitui um tipo de experiência quase alucinatória para o espectador, que deixa-se fascinar por aqueles corpos em movimento. É apenas mais um tipo de representação que se ergue ali, mas uma representação com a qual nós, adultos, envergonhados no escuro da sala de cinema, nos permitimos deslumbrar.

(Calac Neves)
Peiote está na Competição Nacional 4.

Na trave


Continuando minhas reflexões em torno de apelidos para filmes e sessões, parto agora pra algo visto hoje no Odeon. “Sensações contrárias” merece o rótulo “na trave”. Aliás, essa classificação caberia a alguns outros curtas assistidos no festival, os quais ainda não cogitei escrever textos. No caso desse filme baiano, meu incômodo foi imediato, sincronizado às imagens que iam brotando na telona do cinema. Existem filmes que prometem MUITO nos primeiros instantes, até que tomam uma direção oposta ao que parecia ser a proposta inicial, soando que estamos vendo dois filmes diferentes. Isso poderia ser bom se, da mesma forma que tivessem sustância por si, as partes também dialogassem. Geralmente, infelizmente, esse novo curta dentro do outro curta tem batido direto na trave e voltado, fazendo com que eu leve uma bolada na cara.


Analisando nosso exemplo de hoje, comecemos pelas imagens. Uma casa, uma série de pessoas que circulam. Uma garota de patins. Um cachorro. Uma mulher que joga vinho (parecia ser) no chão. Um homem é massageado. Nesse plano da massagem temos o primeiro índice da tragédia qualitativa que vai acontecer no fim do filme. Vemos a foto de um militar. Aí eu pensei “Tudo bem, quer ver esse homem é militar e gosta de massagem”. (ledo engano) O que une esses personagens todos, além do espaço físico, é a linguagem corporal. É óbvio que se trata de uma direção de atores que está a trabalhar a forma como o corpo de seus atores desenha o espaço. Isso fica ainda mais claro quando nos deparamos com o belo plano da mulher que está a lavar roupa, à frente, com uma criança ao fundo, brincando dentro de uma piscina. A mulher começa a ter movimentos exagerados (torções michelangescas), quase trançando seus braços a fim de pegar coisas estendidas num varal.


Até esse momento eu ia interpretando da seguinte forma: é um curta com imagens bem construídas, que visa demonstrar essa fisicalidade inerente aos nossos corpos, que pode ser percebida, justamente, nos menores atos. Assim que penso isso, o “Edifício ‘Sensações contrárias’” desaba. Novos personagens surgem e começam a sacudir para a câmera, como se estivessem incorporados dentro de um terreiro de umbanda. Tudo fica uma loucura e agora as imagens são meros panfletos dessa fatídica categoria de vídeo/artes plásticas: vídeo-dança. As imagens vão perdendo a beleza, a edição vai ficando mais intensa, a ambiência de “mundo real” some e temos, a partir desses instantes, APENAS mais um vídeo-vitrine que expõe suas questões de forma a mais objetiva e crua possível.


Então eu penso “Poxa, que pena. O filme bateu na trave”. Mas, como em toda boa propaganda da Redeshop, vejo nas entrelinhas das novas imagens aquela “... e tem mais!”. A tal fotografia do militar era um indício de que todo esse debater de corpos se passa numa cidade que tem tradição militar. Ou seja: esses “corpos livres” são quase que uma afronta a uma tradição cultural. Isso é coroado em dois momentos. Primeiro o fim do curta, em que um homem tenta (de forma patética) afrontar um grupo de homens que entoa algumas notas de um hino militar. Para tal, é lógico, ele vai utilizar esse seu corpo-minhoca, em que os diretores parecem depositar suas fichas como antítese da rigidez formal do militarismo. Para coroar minhas decepções com chave de ouro, o segundo momento que cito é aquele em que, ingenuamente, busco conforto na sinopse da obra. Ela só piora as coisas devido às explicações conceituais, como uma tal “noção de borrão” (???) que estaria presente nesses corpos. É uma mistura de explicação de coisas que as imagens por si não deixaram claras, com toques de teoria da dança, debatida em boteco na esquina da universidade. Sem falarmos no próprio título do curta, que também visa contribuir (muito literalmente) para essa imagem de pólos opostos entre a dança e os homens fardados.


Depois do desgaste que foi assistir a “Sensações contrárias”, preciso me afogar num copo de cerveja.


(Raphael Fonseca)


"Sensações contrárias" está na sessão Competição Nacional 6.