Um pra um, de Erico Rassi
Sete Minutos, de Cavi Borges, Paulo Silva, Júlio Pecly
*
Uma das frases mais famosas e geniais de Jean-Luc Godard em relação ao cinema surgiu a partir de uma discussão em torno de Hiroshima mon amour, quando o cineasta foi indagado se determinada reação ao filme, como, por exemplo, o amor ou a impaciência, seria de natureza estética ou moral. Godard respondeu: “É a mesma coisa. O travelling é uma questão de moral”. Se essa frase de Godard já foi dita e redita, algumas vezes surpreende como ela pode ser tão esquecida. Essa declaração expressa tanto a obsessão do cineasta pelo mundo das imagens, como une algo que muitos diretores insistem em separar, mesmo que inconscientemente, como parece ser o caso de Sete Minutos: a estética da moral, como se elas pudessem viver em lugares diferentes e independentes, onde uma imagem é tratada como um reflexo de determinada realidade.
Parece que atualmente há uma onda de filmes que se constroem por causa de um desafio técnico, nem mesmo através deles, mas por causa deles, o que muitas vezes faz com que o filme se torne um evento, e passe a ser um escravo do dispositivo, como se a dificuldade ou as condições em que foi produzido fossem a sua maior motivação. Daí se enxerga uma vontade de filmar algo diferente, inovador, e que contenha um desafio no próprio ato da filmagem. Ironicamente, o plano-seqüência parece em moda, pois o seu principal objetivo era, justamente, ser diferente. Aí está o cerne da problemática desses filmes que buscam o seu diferencial no dispositivo: acreditar que o modo de filmagem é suficiente para dar conta de uma realidade.
Há que se considerar que quando essa realidade é a favela e o tráfico, a questão se complica ainda mais no cinema brasileiro da atualidade. Se a onda sobre os filmes em plano-sequência talvez esteja em seu início, a onda de filmes sobre o tráfico parece estar longe de acabar. Mas por quê? Certamente porque esse é um problema urgente no país, pelo qual se sente alguma necessidade de se relatar. Mas não será necessário buscar atribuir outros olhares a esse espaço? Sete minutos acompanha, em tempo real, a perseguição do traficante PC para um acerto de contas com um rival. Reconhece-se o interesse dos diretores em construir outro lugar para a visão do tráfico, a partir da inserção da câmera em um insólito ponto de vista, ainda que esse outro lugar não tenha a pretensão de ser alguma forma de resistência ao olhar predominante que há para a favela ou para o tráfico. No entanto, apesar do esforço do filme de inserir a câmera onde ela possa construir uma outra situação para o tráfico, a sensação é de que não há outra visão ou condição para esse personagem, mas uma submissão da situação que o filme apresenta ao próprio formato que propõe, o do plano-seqüência e o da subjetiva, que acaba por aprisioná-lo e funcionar como uma camisa de força. Mas essas duas opções formais não são gratuitas: para estar junto ou ao lado do traficante, a subjetiva; para buscar a intensidade do momento da perseguição, o tempo real dos sete minutos, em seqüência, sem cortes. No entanto, ainda que essas ferramentas tragam um desejo dos diretores por uma aproximação do personagem, parece que essa aproximação não é capaz de ser resolvida através do dispositivo, de uma obra que aposta em uma espécie de solução estética para um problema que está muito além dele.
Também porque Sete Minutos me fez lembrar insistente e impacientemente da frase de Godard, um outro filme dessa mesma sessão estabelece relações possíveis a partir do tratamento que dá ao dispositivo, além de trazer a figura de Godard como uma referência para o seu personagem principal, cineasta, que faz cinema pornô experimental. Um pra um também atribui à sua câmera o poder de uma ferramenta, dotada de grande poder na narrativa, apesar das temáticas dos dois filmes serem bastante diferentes, sem nenhuma relação direta desse filme com os sete minutos vistos anteriormente em plano-seqüência. Mas Um pra um não chega a ser um filme que está submetido ao dispositivo. Na verdade, pensar na câmera e na confecção das imagens é o objetivo do filme, mas porque é do fazer cinema que ele fala, ao contrário do anterior, que acaba caindo, quase que inconscientemente, dentro das armadilhas do dispositivo. Sete minutos não parece ter a intenção inicial de falar sobre cinema, mas a forma como os diretores filmam faz com que a discussão seja deslocada para este lugar. Mas seria a esse local que o filme deveria se entregar? Assim, o curta fica dividido entre aquele que quer mostrar, mesmo que no fora-de-campo, e a forma como o mostra, sem se resolver nem por um nem por outro.
Mas, no fundo, há um diálogo entre os dois filmes, pois Érico Rassi quer pensar as condições dessa imagem sem cortes, de uma imagem que traga a verdade nua e crua, como diz, ainda que de forma irônica e cômica, o personagem Ramiro Canibal, o que não deixa de ser o objetivo dos diretores de Sete minutos. Como Godard, Canibal acredita que “o único cinema real é o cinema pornográfico”. Seu cinema pornô presa pelo experimentalismo, luta por ele e faz da sua forma o local ideal para a quebra de paradigmas. Assim, filmar é preciso, ainda que ninguém veja o filme. Já no caso de Sete Minutos ver o filme é essencial e ele é feito para isso. Esse é um cinema de uma única imagem, mas que está ali para estar voltada para todos os olhos e espectadores, já que faz uso de uma imagem que tem um toque da imagem espetacular.
Mas é claro que não é possível levar a comparação entre dois filmes de universos tão diferentes em muitas camadas, mas é possível levar em uma camada essencial, em torno do que é o próprio cinema. Há um movimento semelhante entre eles, pelo bem ou pelo mal, que nos faz pensar onde está a liberdade de se fazer cinema, os lugares possíveis do desafio de uma imagem. Esses são dois filmes que, no fundo, partem do desejo de romper barreiras, só que um acaba por fazê-lo em seu lado técnico e outro acaba por expressá-lo tanto tematicamente quanto em sua forma. Os dois apresentam formas diferentes de se tratar uma imagem no que ela tem de imediata, na própria força de ser uma imagem. Mas apesar de Um pra um se definir como “sem corte; sem mudança de plano; sem repetir o take; sem trocar a fita”, essa câmera que quer dar espaço a um mundo feito de imagens em sua vitalidade não submete as composições dessas imagens a uma questão técnica ou formal.
No fim, ver esses dois filmes em seqüência forma uma pequena fantasia de que um personagem de um filme pudesse dizer algo enriquecedor para o outro. Algo como “foda-se o dolby digital 5.1, foda-se o cinemark, aqui é a verdade nua e crua; isso aqui é cinema pra quem tem estômago. Isso é o que acontece quando se rompem as barreiras e quebram-se paradigmas. Quando o artista tem as suas liberdades éticas e morais”. O dolby e o cinemark aqui são apenas mais uma técnica, que pode ou não ser glorificada. Seria muito bom se essa comparação entre os dois filmes, muito mais do que atribuir maior valor a um do que ao outro, pudesse trazer alguma reflexão sobre o que é o cinema, a sua técnica e os desafios de suas imagens.
Juliana Cardoso
Parece que atualmente há uma onda de filmes que se constroem por causa de um desafio técnico, nem mesmo através deles, mas por causa deles, o que muitas vezes faz com que o filme se torne um evento, e passe a ser um escravo do dispositivo, como se a dificuldade ou as condições em que foi produzido fossem a sua maior motivação. Daí se enxerga uma vontade de filmar algo diferente, inovador, e que contenha um desafio no próprio ato da filmagem. Ironicamente, o plano-seqüência parece em moda, pois o seu principal objetivo era, justamente, ser diferente. Aí está o cerne da problemática desses filmes que buscam o seu diferencial no dispositivo: acreditar que o modo de filmagem é suficiente para dar conta de uma realidade.
Há que se considerar que quando essa realidade é a favela e o tráfico, a questão se complica ainda mais no cinema brasileiro da atualidade. Se a onda sobre os filmes em plano-sequência talvez esteja em seu início, a onda de filmes sobre o tráfico parece estar longe de acabar. Mas por quê? Certamente porque esse é um problema urgente no país, pelo qual se sente alguma necessidade de se relatar. Mas não será necessário buscar atribuir outros olhares a esse espaço? Sete minutos acompanha, em tempo real, a perseguição do traficante PC para um acerto de contas com um rival. Reconhece-se o interesse dos diretores em construir outro lugar para a visão do tráfico, a partir da inserção da câmera em um insólito ponto de vista, ainda que esse outro lugar não tenha a pretensão de ser alguma forma de resistência ao olhar predominante que há para a favela ou para o tráfico. No entanto, apesar do esforço do filme de inserir a câmera onde ela possa construir uma outra situação para o tráfico, a sensação é de que não há outra visão ou condição para esse personagem, mas uma submissão da situação que o filme apresenta ao próprio formato que propõe, o do plano-seqüência e o da subjetiva, que acaba por aprisioná-lo e funcionar como uma camisa de força. Mas essas duas opções formais não são gratuitas: para estar junto ou ao lado do traficante, a subjetiva; para buscar a intensidade do momento da perseguição, o tempo real dos sete minutos, em seqüência, sem cortes. No entanto, ainda que essas ferramentas tragam um desejo dos diretores por uma aproximação do personagem, parece que essa aproximação não é capaz de ser resolvida através do dispositivo, de uma obra que aposta em uma espécie de solução estética para um problema que está muito além dele.
Também porque Sete Minutos me fez lembrar insistente e impacientemente da frase de Godard, um outro filme dessa mesma sessão estabelece relações possíveis a partir do tratamento que dá ao dispositivo, além de trazer a figura de Godard como uma referência para o seu personagem principal, cineasta, que faz cinema pornô experimental. Um pra um também atribui à sua câmera o poder de uma ferramenta, dotada de grande poder na narrativa, apesar das temáticas dos dois filmes serem bastante diferentes, sem nenhuma relação direta desse filme com os sete minutos vistos anteriormente em plano-seqüência. Mas Um pra um não chega a ser um filme que está submetido ao dispositivo. Na verdade, pensar na câmera e na confecção das imagens é o objetivo do filme, mas porque é do fazer cinema que ele fala, ao contrário do anterior, que acaba caindo, quase que inconscientemente, dentro das armadilhas do dispositivo. Sete minutos não parece ter a intenção inicial de falar sobre cinema, mas a forma como os diretores filmam faz com que a discussão seja deslocada para este lugar. Mas seria a esse local que o filme deveria se entregar? Assim, o curta fica dividido entre aquele que quer mostrar, mesmo que no fora-de-campo, e a forma como o mostra, sem se resolver nem por um nem por outro.
Mas, no fundo, há um diálogo entre os dois filmes, pois Érico Rassi quer pensar as condições dessa imagem sem cortes, de uma imagem que traga a verdade nua e crua, como diz, ainda que de forma irônica e cômica, o personagem Ramiro Canibal, o que não deixa de ser o objetivo dos diretores de Sete minutos. Como Godard, Canibal acredita que “o único cinema real é o cinema pornográfico”. Seu cinema pornô presa pelo experimentalismo, luta por ele e faz da sua forma o local ideal para a quebra de paradigmas. Assim, filmar é preciso, ainda que ninguém veja o filme. Já no caso de Sete Minutos ver o filme é essencial e ele é feito para isso. Esse é um cinema de uma única imagem, mas que está ali para estar voltada para todos os olhos e espectadores, já que faz uso de uma imagem que tem um toque da imagem espetacular.
Mas é claro que não é possível levar a comparação entre dois filmes de universos tão diferentes em muitas camadas, mas é possível levar em uma camada essencial, em torno do que é o próprio cinema. Há um movimento semelhante entre eles, pelo bem ou pelo mal, que nos faz pensar onde está a liberdade de se fazer cinema, os lugares possíveis do desafio de uma imagem. Esses são dois filmes que, no fundo, partem do desejo de romper barreiras, só que um acaba por fazê-lo em seu lado técnico e outro acaba por expressá-lo tanto tematicamente quanto em sua forma. Os dois apresentam formas diferentes de se tratar uma imagem no que ela tem de imediata, na própria força de ser uma imagem. Mas apesar de Um pra um se definir como “sem corte; sem mudança de plano; sem repetir o take; sem trocar a fita”, essa câmera que quer dar espaço a um mundo feito de imagens em sua vitalidade não submete as composições dessas imagens a uma questão técnica ou formal.
No fim, ver esses dois filmes em seqüência forma uma pequena fantasia de que um personagem de um filme pudesse dizer algo enriquecedor para o outro. Algo como “foda-se o dolby digital 5.1, foda-se o cinemark, aqui é a verdade nua e crua; isso aqui é cinema pra quem tem estômago. Isso é o que acontece quando se rompem as barreiras e quebram-se paradigmas. Quando o artista tem as suas liberdades éticas e morais”. O dolby e o cinemark aqui são apenas mais uma técnica, que pode ou não ser glorificada. Seria muito bom se essa comparação entre os dois filmes, muito mais do que atribuir maior valor a um do que ao outro, pudesse trazer alguma reflexão sobre o que é o cinema, a sua técnica e os desafios de suas imagens.
Juliana Cardoso
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