sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Os artistas e as cidades


Na sessão no Odeon dedicada à sua obra, Antonio Carlos da Fontoura afirmou que uma das razões que o motivou a realizar “Ver Ouvir” (1966) foi o fato de que Roberto Magalhães, Antonio Dias e Rubens Gerchman eram alguns dos poucos artistas com quem ele podia, em um vernissage, falar e ser ouvido.

A beleza desta construção tão simples revela, na realidade, a elaboração de um dispositivo generoso: Fontoura quer conversar, quer permitir que seu cinema seja invadido por outras linguagens, outros discursos. Sua orientação é abrir-se ao outro, encontrar o artista “documentado”. Em “Ver Ouvir”, especialmente, a relação entre a obra filmada e o ato de documentá-la orientam, de diferentes formas, a realização dos filmes.

Dividido em três partes, “Ver Ouvir” apresenta o retrato dos três artistas. Roberto Magalhães é o primeiro. A idéia de espelho permeia toda a construção imagética do curta. A deformação das formas nas pinturas e desenhos de Magalhães rima com sua figura também deformada, espelhada. Engajado na elaboração do filme, ele pinta o rosto com o colorido de seus quadros, caminha pela cidade. Presentes na narração do artista, os objetos da infância também ecoam em suas obras e são sugeridos pelas imagens em que ele transita por um parque de diversões.

Na parte sobre Antonio Dias, o universo do artista ganha materialidade através da performance, insere-se no filme a partir de seu corpo alterado. Os planos de Fontoura tornam-se imagens possíveis da obra de Antonio Dias, preservam sua dubiedade de sentido. Podem ser mágicas, coloridas; mas também irônicas, quase obscuras – como um homem que transita pela cidade com uma máscara de gás. “Coração para amassar”, obra de 1966, aparece vibrante, emoldurada por uma fotografia que acentua as cores quentes. Afetivo e crítico, Antonio Dias revela: “é preciso muita força para não ser idealista”.

Em seu retrato de Rubens Gershman, mais uma vez o artista sai do estúdio para as ruas. Aqui, literalmente, a obra é colocada em meio aos passantes. Diferentemente dos outros dois blocos, desta vez não é o pintor que narra, mas as pessoas, nas ruas, que falam livremente sobre a obra. A arte simboliza? Representa? O que tem a ver com as coisas e personagens da cidade – manequins de uma vitrine, jornais, anúncios? Que histórias quer ou não contar? Em que medida se alimenta do povo e de seu imaginário? Mais uma vez, o artista vira personagem que constrói o filme com o cineasta.

Outros dois curtas de Fontoura, exibidos na sessão, registram obras de artistas plásticos. O belíssimo “Ouro Preto e Scliar” (1969) tematiza a relação do pintor com a cidade mineira de Ouro Preto. Aqui, importam mais as formas e cores, pouco os seus habitantes. Nas palavras do pintor, que narra o filme, a cidade é “lapidada pela ignorância”. Casas e telhados invadem as telas do artista, reveladas pelo olhar sensível de Fontoura. Os potes de tinta têm as cores das ruas – ocres, vermelhos, brancos. O artista aparece pintando sob a luz que entra por uma grande janela, ou em refeições entre amigos. O ritmo calmo da cidade orienta o tempo dos planos e permite a total imersão no processo de trabalho de Scliar.

Em “Wanda Pimentel” (1972), Fontoura parte de fragmentos da obra da artista plástica para tecer pequenas “narrativas” visuais. Os objetos presentes nas pinturas – secador de cabelo, depilador, pasta de dente, liquidificador – também se encontram fora da tela, no dia a dia de Wanda. Aqui, não há falas – mas os sons e ruídos dos objetos. Wanda fuma, lê uma revista, espera. Das formas da casa, passamos às urbanas. Instalações da artista trazem ralos, bueiros, esculturas que sugerem prédios. Construída a partir da arquitetura do cotidiano, a obra de Wanda ganha o belo recorte de Fontoura, que pontua com delicadeza a solidão que ela sugere.


Rita Toledo

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