Pessoalmente, tenho uma queda indisfarçável pelos clássico-narrativos. Quando topei entrar na cobertura crítica de um festival de curtas, sabia que eles seriam raridade entre filmes experimentais, ficções e documentários de linguagem mais arrojada. Afinal, como eu já havia escrito num texto anterior postado aqui no blog, o curta-metragem abre espaço à essa experimentação, até porque é um universo mais livre que o do longa-metragem. Alguns filmes nessa linha têm me conquistado e rendido experiências agradáveis. Mas, provavelmente pela identificação maior que tenho com os clássico-narrativos (o principal objeto de meus estudos), é neles que acabo prestando mais atenção.
O que tem me acontecido durante o Curta Cinema é algo curioso. Os clássico-narrativos, documentais ou de ficção, vêm acompanhados dos filmes de linguagem mais moderna (“moderna” não apenas no sentido de “atual”, mas do próprio cinema moderno do pós-Segunda Guerra – afinal, não foi com a nouvelle vague francesa que virou moda subverter a linguagem clássica dos filmes americanos?) dentro das sessões onde estão agrupados. A comparação inevitável entre uns e outros, em termos de estética, linguagem e narrativa, faz eu me perguntar se o filme clássico-narrativo soube passar seu recado suficientemente bem para que tenha valido a pena escolher esse caminho. O curta de caráter mais experimental, se não consegue fazer isso, às vezes se salva por algum artifício estético que diminui o fracasso por parecer interessante. Mas o clássico-narrativo não tem essa desculpa. Sinceramente, começo a pensar que a linguagem clássica num curta-metragem é uma opção mais corajosa do que inventar moda. Afinal, têm-se só alguns minutos para contar a história.
Dentro do que já vi no festival, posso dizer que muitos clássico-narrativos não passaram no teste e são apenas insossos. “Falta do Papai” (“Pop Foul”, EUA, 2006) não está entre eles, pois é um filme impecável. Clássico-narrativo convicto, calcado no american way of life de periferia, é óbvio que agradou os ianques, a ponto de ter levado o Oscar de Filme de Estudante. Ganhou também o prêmio de Melhor Curta de Estudante no Festival de Curtas de Woodstock e o HBO de Curtas no Festival Americano de Cinema Negro. A consciência negra tem sido bastante valorizada (na mesma sessão, o documentário “De Acordo Com...” lembrou o preconceito na sociedade norte-americana). Black is beautiful e está na moda. E isso tem tudo a ver com cinema.
O protagonista é um garoto que participa da Liga Júnior de beisebol. Voltando para casa depois de ter perdido um jogo, ele testemunha o pai apanhar de um sujeito mal encarado sem reagir. Pai e filho combinam de não contar nada à mãe do garoto. Lendo o título antes de ver o filme, ele pode remeter à mais batida das relações entre adultos e crianças no cinema: um menino que sente falta do pai, ausente por algum motivo. O português fica mais claro se prestarmos atenção no título original, “Pop Foul”. “Pop” é “papai” na gíria americana; “foul” é falta, jogada não permitida no futebol. “Falta do Papai” se refere, então, ao deslize que o pai comete com o filho na história. Uma falta que existe sob o ponto de vista do garoto, mas não necessariamente do espectador.
Enquanto voltam para casa depois do jogo, pai e filho conversam sobre como se portar frente à derrota (e à humilhação, por conseqüência). Desde a primeira seqüência, quando está no campo já vazio batendo na cerca, o garoto mostra uma fúria indomada. Essa agressividade contrasta com outra característica do menino: ele nunca consegue conter o pranto quando está frustrado ou triste. No caminho, o pai diz ao filho que ele deve aprender a controlar as lágrimas, a ser forte e reagir quando está por baixo. É fácil compreender a decepção do menino quando, logo depois desse discurso, seu pai é abordado por um conhecido que o agride sem que ele reaja ou se esforce verdadeiramente para se defender. Para o garoto, que havia acabado de dizer ao pai que sua força é um traço hereditário (e o adulto responde que foi algo que ele puxou da família materna), foi um golpe.
A incapacidade de reação é só a primeira parte da falta que o pai comete com o garoto. A mãe pressiona o menino para saber onde o marido conseguiu o olho roxo e ele inventa uma desculpa. Mais tarde, o garoto descobre que, sem combinar, ele e o pai contaram à mãe a mesma mentira e se vangloria disso. Mas o pai, que tinha sofrido uma humilhação na frente da criança para quem deveria servir de exemplo, briga com ele e diz que não precisa da sua ajuda. O garoto, mais uma vez, chora e tem um acesso de agressividade. Já que sua mentira não tinha consertado a situação, ele resolve contar a verdade à mãe, que o repreende por isso. Decepcionado e sem entender os adultos, o menino, no auge de sua fúria, desconta no cachorro. O animal passa a ser, então, o que o garoto era: um inocente sem compreensão, afetado pelo erro e pela raiva de outro(s).
Quando digo que a falta que existe aos olhos do menino não é obrigatoriamente compartilhada pelo espectador, é porque somos capazes de compreender também o ponto de vista dos pais. E, no fundo, toda a tensão acontece pelo conflito entre os pontos de vista da criança e dos adultos. É uma idéia simples, mas repleta de sentimentos sutis. O filme é impecável justamente por ter um domínio perfeito da narrativa, além de trilha sonora e fotografia irrepreensíveis. Os primeiros planos do curta, onde o espaço vai sendo mostrado (a ambientação da história logo na seqüência de abertura é comum desde sempre nos clássico-narrativos) me chamaram a atenção por serem especialmente “artísticos”. Com uma saturação das cores belíssima e os holofotes do campo enquadrados de um ângulo diagonal, são como um luxo de avant-garde dentro do cinema clássico. Os atores, todos negros, são intensos. Sempre tenho a impressão de que atores negros são mais passionais e sabem tomar conta da tela.
Este filme é um prazer e uma dor. Sabe como quando você é criança e vai brincar com o amiguinho mais rico da turma? Ele tem os brinquedos mais caros, a casa mais bonita, vários empregados para paparicá-lo. Pode nem ser o mais inteligente, mas para ele tudo é mais fácil. O filme é exatamente isto: em última instância, é a evidência de que dinheiro faz, sim, uma grande diferente na realização cinematográfica. “Falta do Papai” é um CURTA UNIVERSITÁRIO norte-americano. Aqui nos nossos trópicos, se o brinquedo velho estraga temos que continuar filmando com ele – mamãe não tem dinheiro para comprar outro. E isso não acontece somente na produção universitária – pergunte a um cineasta perto de você. O abismo técnico que há entre o cinema brasileiro e o norte-americano é fatal. Não sei quanto à vocês, mas, para mim, isso é frustrante e quase desencorajador.
O que tem me acontecido durante o Curta Cinema é algo curioso. Os clássico-narrativos, documentais ou de ficção, vêm acompanhados dos filmes de linguagem mais moderna (“moderna” não apenas no sentido de “atual”, mas do próprio cinema moderno do pós-Segunda Guerra – afinal, não foi com a nouvelle vague francesa que virou moda subverter a linguagem clássica dos filmes americanos?) dentro das sessões onde estão agrupados. A comparação inevitável entre uns e outros, em termos de estética, linguagem e narrativa, faz eu me perguntar se o filme clássico-narrativo soube passar seu recado suficientemente bem para que tenha valido a pena escolher esse caminho. O curta de caráter mais experimental, se não consegue fazer isso, às vezes se salva por algum artifício estético que diminui o fracasso por parecer interessante. Mas o clássico-narrativo não tem essa desculpa. Sinceramente, começo a pensar que a linguagem clássica num curta-metragem é uma opção mais corajosa do que inventar moda. Afinal, têm-se só alguns minutos para contar a história.
Dentro do que já vi no festival, posso dizer que muitos clássico-narrativos não passaram no teste e são apenas insossos. “Falta do Papai” (“Pop Foul”, EUA, 2006) não está entre eles, pois é um filme impecável. Clássico-narrativo convicto, calcado no american way of life de periferia, é óbvio que agradou os ianques, a ponto de ter levado o Oscar de Filme de Estudante. Ganhou também o prêmio de Melhor Curta de Estudante no Festival de Curtas de Woodstock e o HBO de Curtas no Festival Americano de Cinema Negro. A consciência negra tem sido bastante valorizada (na mesma sessão, o documentário “De Acordo Com...” lembrou o preconceito na sociedade norte-americana). Black is beautiful e está na moda. E isso tem tudo a ver com cinema.
O protagonista é um garoto que participa da Liga Júnior de beisebol. Voltando para casa depois de ter perdido um jogo, ele testemunha o pai apanhar de um sujeito mal encarado sem reagir. Pai e filho combinam de não contar nada à mãe do garoto. Lendo o título antes de ver o filme, ele pode remeter à mais batida das relações entre adultos e crianças no cinema: um menino que sente falta do pai, ausente por algum motivo. O português fica mais claro se prestarmos atenção no título original, “Pop Foul”. “Pop” é “papai” na gíria americana; “foul” é falta, jogada não permitida no futebol. “Falta do Papai” se refere, então, ao deslize que o pai comete com o filho na história. Uma falta que existe sob o ponto de vista do garoto, mas não necessariamente do espectador.
Enquanto voltam para casa depois do jogo, pai e filho conversam sobre como se portar frente à derrota (e à humilhação, por conseqüência). Desde a primeira seqüência, quando está no campo já vazio batendo na cerca, o garoto mostra uma fúria indomada. Essa agressividade contrasta com outra característica do menino: ele nunca consegue conter o pranto quando está frustrado ou triste. No caminho, o pai diz ao filho que ele deve aprender a controlar as lágrimas, a ser forte e reagir quando está por baixo. É fácil compreender a decepção do menino quando, logo depois desse discurso, seu pai é abordado por um conhecido que o agride sem que ele reaja ou se esforce verdadeiramente para se defender. Para o garoto, que havia acabado de dizer ao pai que sua força é um traço hereditário (e o adulto responde que foi algo que ele puxou da família materna), foi um golpe.
A incapacidade de reação é só a primeira parte da falta que o pai comete com o garoto. A mãe pressiona o menino para saber onde o marido conseguiu o olho roxo e ele inventa uma desculpa. Mais tarde, o garoto descobre que, sem combinar, ele e o pai contaram à mãe a mesma mentira e se vangloria disso. Mas o pai, que tinha sofrido uma humilhação na frente da criança para quem deveria servir de exemplo, briga com ele e diz que não precisa da sua ajuda. O garoto, mais uma vez, chora e tem um acesso de agressividade. Já que sua mentira não tinha consertado a situação, ele resolve contar a verdade à mãe, que o repreende por isso. Decepcionado e sem entender os adultos, o menino, no auge de sua fúria, desconta no cachorro. O animal passa a ser, então, o que o garoto era: um inocente sem compreensão, afetado pelo erro e pela raiva de outro(s).
Quando digo que a falta que existe aos olhos do menino não é obrigatoriamente compartilhada pelo espectador, é porque somos capazes de compreender também o ponto de vista dos pais. E, no fundo, toda a tensão acontece pelo conflito entre os pontos de vista da criança e dos adultos. É uma idéia simples, mas repleta de sentimentos sutis. O filme é impecável justamente por ter um domínio perfeito da narrativa, além de trilha sonora e fotografia irrepreensíveis. Os primeiros planos do curta, onde o espaço vai sendo mostrado (a ambientação da história logo na seqüência de abertura é comum desde sempre nos clássico-narrativos) me chamaram a atenção por serem especialmente “artísticos”. Com uma saturação das cores belíssima e os holofotes do campo enquadrados de um ângulo diagonal, são como um luxo de avant-garde dentro do cinema clássico. Os atores, todos negros, são intensos. Sempre tenho a impressão de que atores negros são mais passionais e sabem tomar conta da tela.
Este filme é um prazer e uma dor. Sabe como quando você é criança e vai brincar com o amiguinho mais rico da turma? Ele tem os brinquedos mais caros, a casa mais bonita, vários empregados para paparicá-lo. Pode nem ser o mais inteligente, mas para ele tudo é mais fácil. O filme é exatamente isto: em última instância, é a evidência de que dinheiro faz, sim, uma grande diferente na realização cinematográfica. “Falta do Papai” é um CURTA UNIVERSITÁRIO norte-americano. Aqui nos nossos trópicos, se o brinquedo velho estraga temos que continuar filmando com ele – mamãe não tem dinheiro para comprar outro. E isso não acontece somente na produção universitária – pergunte a um cineasta perto de você. O abismo técnico que há entre o cinema brasileiro e o norte-americano é fatal. Não sei quanto à vocês, mas, para mim, isso é frustrante e quase desencorajador.
Isabella Goulart
“Falta do Papai” está na Competição Internacional 7.
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