Peiote é o nome de uma planta alucinógena utilizada por índios mexicanos em rituais de espiritualização. Com seu filme de mesmo nome, rodado no México, Cao Guimarães parece querer propor ao espectador um tipo de experiência similar, quase transcendente mesmo. Uma tentativa de descobrir na imagem ordinária aquilo que há de espantoso, de deslumbrante – na física dos corpos, nas cores saltando na tela, no som que, no ato da apreensão mental do filme, permeia tudo aquilo. Um deslumbramento que só é possível através de um relacionamento intenso com a dimensão sensível dessa imagem, da contemplação siderada do objeto apresentado. Ou do uso de algum tipo de alucinógeno.
Falando do filme propriamente dito, é possível que a referência explícita ao peiote encontre bem mais respaldo na narrativa proposta pelo diretor. No filme, acompanhamos um garoto que dança incansável em meio à multidão de algum tipo de festa ou apresentação folclórica. O garoto veste roupas comuns, além de um gorro, enquanto que os outros – todos adultos – estão fantasiados – há uma motivação indígena em suas fantasias, mas a riqueza e o preciosismo delas denunciam a farsa, a
representação. Trata-se exatamente disso, tanto para o garoto quanto para o espectador: alucinar-se com a
representação. Rodeado de signos, cores, gestos, em suma, formas de representação, o garoto verdadeiramente
pira.
Se veiculado no Youtube sem a assinatura de seu diretor, o vídeo provavelmente receberia um nome como “garoto chapado dança loucamente”. E o curioso é que, no fundo, o filme é isso mesmo, precisamente. Só que, ao que parece, não é o peiote o responsável pela situação do personagem, ainda que Cao Guimarães, com um quê de ironia, sugira isso no título. É a própria vida acontecendo ao seu redor, mascarada, representada, lúdica. É essa não distinção tão característica da infância entre o que é real e o que não é, o que é fantasia, representação. A naturalidade do vídeo é tremenda, ficando difícil duvidar dessa espécie de conexão transcendente, eufórica, entre o garoto e as imagens que bailam à sua volta.
Mas o que torna o filme especial não é só essa naturalidade com a qual o próprio real se traveste. É também, lógico, a forma de Cao Guimarães filmar, sempre respeitosa, câmera na altura do garoto, trilha sonora acrescentada no compasso do personagem, na medida do possível. É, no fundo, a repetição de algo que podemos identificar em vários trabalhos do diretor: uma habilidade na composição dos planos e na manipulação da imagem que, todavia, jamais serve a um virtuosismo auto-centrado, mas que procura proporcionar um processo de expansão da experiência contemplativa daquelas figuras registradas – os personagens do filme. Isso já estava presente no fabuloso
Da janela do meu quarto (filme num certo sentido bastante parecido com este, pela preocupação em situar fisicamente o espectador, que assumirá a condição de observador de um evento), e retorna aqui quase com a mesma intensidade, a despeito da precariedade do registro.
Dessa forma,
Peiote, ainda que soe como um mero registro de viagem, representa a continuação de um cinema documental que, longe de querer ser o próprio real, procura mediar a relação entre o espectador e o mundo que registra. A
mise-en-scène – os efeitos de fotografia, tratamento de imagem, acréscimo de trilha sonora – potencializa esse real que, à medida que vai se prolongando – e ele sempre irá se prolongar pois este é um outro vetor dos trabalhos de Cao Guimarães -, constitui um tipo de experiência quase alucinatória para o espectador, que deixa-se fascinar por aqueles corpos em movimento. É apenas mais um tipo de representação que se ergue ali, mas uma representação com a qual nós, adultos, envergonhados no escuro da sala de cinema, nos permitimos deslumbrar.
(Calac Neves)
Peiote está na Competição Nacional 4.