quarta-feira, 31 de outubro de 2007

"Meu nome é Gal" e as imagens de Fontoura


Como um objeto não identificado. Esse é o modo que Antonio Carlos da Fontoura olha para o que desperta o seu desejo por filmar, para o que desperta o seu amor por ligar a câmera e se colocar diante de uma manifestação artística que ame, seja ela uma pintura, texto ou música. Na sessão de gala da homenagem a Fontoura, o cineasta, que estava presente, diz que sempre gostou muito de pintura, música e literatura e, que, por isso, virou cineasta, pois assim poderia juntar suas três paixões numa expressão artística única. Esse comentário de Fontoura diz muito sobre o seu cinema e a sobre sua forma de filmar, pois ao invés de fazer do cinema algo que possa ser identificado como tal, seus filmes manifestam um diálogo profundo entre essas artes, um estado de imersão entre o que pode unir uma manifestação artística a outra.

Meu nome é Gal poderia ser classificado em um primeiro momento como um videoclip, mas por alguma razão essa não parece ser a melhor definição para o filme. Isso não acontece apenas porque a sua estrutura musical é composta por três músicas, ao invés de uma só, como acontece nos clips de hoje e na própria idéia de se lançar uma música a partir do aspecto comercial e de apresentação que traz um videoclip. Nesse sentido, é importante lembrar que os anos 70, ano de feitura dessas imagens, a linguagem do videoclip ainda não estava estabelecida. Mas além de tudo isso, o objetivo do cineasta aqui parece ser outro: Fontoura filma Gal para acompanhá-la, para deixá-la viver entre lugares que fazem parte de suas vidas e dos seus sonhos.

Portanto, não só Fontoura tem toda uma liberdade para retratar uma cantora sem ter padrões estabelecidos para esse exercício, como também apresenta uma motivação que vai além de uma representação que busca apenas compor uma narrativa musical. Gal é a motivação, Gal por ela mesma, como ouvimos e sentimos tantas vezes ouvindo a música-título. Mas agora isso vem em imagens, até mesmo porque no cinema de Fontoura ver é ouvir e vice-versa. Por isso, ao mesmo tempo que antecipa a importância que a própria música ganharia na carreira da cantora, Fontoura extrapola as possibilidades de ser Gal para além do título do filme, para além da intensidade de ser Gal que a própria música traz. Todas aquelas imagens formam a cantora, tanto a menina que se arruma diante do espelho para sair e que revela a preocupação do cineasta de procurá-la em seus gestos cotidianos, como a Gal que aparece nas imagens mais estranhas e belas do filme: em meio a uma densa floresta, estática e mágica, como parte integrante da natureza. São imagens em que o que há de belo também é o que há de desconhecido. Estamos diante de imagens de um tempo e de espaços não muito identificados, inesquecíveis, e que se constroem como pura sensação, como traz de forma extrema a performance da cantora numa boate quando canta a música título do filme. Mas o que são todos esses cinemas não-identificados de Fontoura?

Talvez seja uma forma devota e apaixonada de filmar, como se a sua câmera só pudesse ser uma câmera-pincel, que deve colorir o filme com os sentimentos do cineasta. Nos outros curtas que integram a retrospectiva, essa devoção também está evidente e sustenta tanto as construções de enquadramentos como os movimentos de câmera – como, por exemplo, nos travellings lentíssimos que deixam a pintura acontecer e ter seu próprio tempo, ou nos contraplonges das construções arquitetônicas de Ouro Preto e Scliar. Essa devoção também faz com que Fontoura construa um movimento entre os cortes que estabelece uma relação entre a arte e a vida em que esta se inspira e, como todo apaixonado, o cineasta se entrega completamente ao seu objeto de filmagem. Imagens que buscam a semelhança entre suas pinturas e seus referentes, como a Ouro Preto que se mescla entre pinturas e telhados, ou a Gal que tanto é uma Gal mulher como uma Gal performática.

Um cineasta que se devota às imagens porque consegue apostar com intensidade no fascínio e amor que sente por elas. Assim, de algum modo Fontoura parece ter tido sempre em mente os motivos que o levaram a fazer cinema. Como diz Antonio Dias em Ver Ouvir, “infinitas são as deformações e as combinações” no cinema de Fontoura.

Juliana Cardoso

O lobinho nunca mente (Ian SBF, 2007)

Em um dado momento de sua célebre crítica-manifesto Da abjeção, Jacques Rivette afirma que “todos os temas nascem livres e iguais em direito; o que conta, é o tom, ou a inclinação, ou a nuança, como se quiser chamar – ou seja, o ponto de vista de um homem, o autor, mal necessário, e a atitude que toma esse homem em relação àquilo que filma”. Talvez a sentença sirva de ponto de partida para a reflexão sobre a maneira com que O lobinho nunca mente lida com os minutos que antecedem a morte de seu protagonista – todo o filme, na verdade, gira em torno desses últimos minutos.

Logo no primeiro plano do curta-metragem de Ian SBF, somos postos diante da imagem de um homem paralisado no chão de sua casa. A narração em off em primeira pessoa explica: há três dias ele havia subido em cima de uma cadeira para colar um pôster na parede, mas caiu, e estava desde então incapaz de realizar qualquer tipo de movimento, o único que lhe restava era o piscar dos olhos. Também nos é dito que este homem está perto de morrer de sede, pois vive as últimas horas que o corpo humano é capaz de suportar sem água.

Após a projeção, me faço uma primeira e essencial pergunta para dar início à tentativa de compreender este filme: por que o humor permeia a narração que exprime os pensamentos do personagem? Certamente não se trata de uma questão de verossimilhança, pois seguramente a última intenção de qualquer um que estivesse a ponto de morrer de sede e fome seria a de fazer graça. Chego então a uma primeira possível resposta que está longe de ser definitiva - o humor é de certa forma, um dispositivo para tornar a situação suportável, e na pior das hipóteses até agradável, ao espectador, na medida em que o coloca a uma distância segura da dor, segura o suficiente para que se possa rir sem constrangimento. Tenho ainda uma segunda inquietação: por que, ao final, o filme condena tão severamente seu protagonista em sua auto-reflexão, revivendo todas as sacanagens que teria feito ao longo de sua vida até chegue à conclusão de que merece a morte? Talvez, e aí chego a outra possível e não definitiva resposta, seja novamente uma maneira de se fazer com que uma morte tão terrível seja mais facilmente aceita e palatável ao espectador, uma vez que é aceita pelo próprio personagem como forma de autopunição.

De maneira geral, todas as minhas questões parecem culminar na forma como o curta soluciona a dificuldade de se filmar a morte e na aparente falta de questionamentos a partir da escolha desse objeto. É perturbadora a coexistência de uma imagem tão horrível (e naturalista) quanto a de um homem estirado no chão da sala com a cabeça sangrando, imobilizado (em um dado momento até comparado a uma maçã apodrecendo), com uma narração em off preocupada em fazer piadas. Retornamos, então, ao ponto inicial dessa reflexão, pois, se absolutamente tudo pode servir de objeto para o cinema, cabe a nós questionarmos o posicionamento do cineasta em relação a este objeto. Até que ponto um diretor pode abstrair aquilo que filma da forma com que o filma? Não é minha intenção, de forma alguma, defender que o cinema deva mostrar respeito absoluto por este ou aquele assunto, sendo acusado de moralmente condenável caso contrário, mas apenas um cuidado na forma de lidar com o seu objeto, e é justamente isso que parece faltar em O lobinho nunca mente - cuidado.

(Alice Furtado)
O lobinho nunca mente está na competição nacional 5

Dueto, de Ji-yeon Jung


Difícil imaginar sobre o que é “Dueto” (“Duet”, Coréia do Sul, 2007) quando o filme começa. A câmera passeia por dentro de um bar, despreocupada em fixar limites para o enquadramento. Sem muito interesse, ela segue uma senhora que serve uma mesa onde está um grupo de jovens. A câmera não volta ao balcão com a senhora, mas fica em volta dos jovens, como se tivesse encontrado ali algo para mostrar. As moças e rapazes conversam, bebem e riem. Não há nada de incomum em seu comportamento e até aquele momento a câmera não destaca um ou outro personagem no grupo. Isto só passa a acontecer com mais uma cena corriqueira: um novo garoto chega no bar para encontrar um amigo que está entre o grupo e uma das moças na mesa se encanta por ele. A câmera abandona o enquadramento aleatório e a moça e o rapaz passam a ser o centro de sua atenção. Ainda assim, o enquadramento não é dos mais clássicos: os planos não recortam perfeitamente ela, ele e os coadjuvantes que interessam na ação; há sempre pedaços de outros corpos (de cabeças, de braços) na imagem.


A moça olha para o rapaz, que a princípio parece não enxergá-la. Seria aquela, então, uma história de amor não correspondido? Essa pergunta perde o sentido quando, a partir da seqüência seguinte, o filme entra num novo ritmo. O grupo de jovens não está mais presente, apenas a moça e o rapaz estão do lado de fora do bar num silêncio incômodo. Os dois estão sozinhos e claramente interessados um no outro, mas não sabem como agir. Os enquadramentos da câmera aumentam a sensação de desconforto e insegurança. Por exemplo, um plano da garota fumando, olhando para frente e não para ele, que está ao lado dela. Há uma certa distância física entre eles, porque, mesmo com o enquadramento aberto da câmera, neste plano somente ela aparece na imagem. Seguem-se um plano parecido dele, com as mãos nos bolsos e olhando para baixo, um plano mais aberto onde aparecem os dois e as imagens vão se sucedendo assim. Quando ele puxa uma conversa, ela mal responde e sai de quadro devagar, atravessando na frente dele. A incapacidade de estabelecerem uma ligação, apesar do desejo à flor da pele, angustia. E nós participamos daquele flerte desajeitado.


Esta relação é desenvolvida de uma maneira tão precisa pela câmera que a situação - afinal, bastante comum - ganha graciosidade e uma certa poesia. O controle que o diretor Ji-yeon Jung tem da mise-en-scène é ainda mais perceptível na seqüência posterior, onde o filme encontra um terceiro ritmo. A moça acha uma alternativa para se expressar, cantando uma letra que traduz tudo o que ela não consegue dizer ao rapaz. Ele a acompanha na canção e o filme se torna, de repente, um musical (como é típico desse gênero, as declarações de amor são cantadas). O dueto quebra o silêncio e através dele o casal consegue se comunicar. É um momento tão adorável que o filme fica completo ali, quando nós entendemos que episódios simples e corriqueiros podem ser muito bonitos.



(Isabella Goulart)



"Dueto" está na Competição Internacional 5.

A vida de Giácomo


“A vida de Giácomo” (2006) conta a história de um jovem prestes a ordenar-se padre. Em uma pequena vila litorânea na Itália, ele convive com seus colegas seminaristas. A ordem e a harmonia que regem seu cotidiano orientam também a concepção dos planos e a ação que neles transcorre. Quando preparam suas refeições e sentam-se à mesa, ou, em um momento posterior, quando dançam e cantam em uma colina, seus corpos movimentam-se ágeis, preenchendo o quadro de maneira naturalmente orquestrada. O trabalho do fotógrafo italiano Mario Giacomelli “Io non ho mani che mi accarezzino il volto", em que padres brincam na neve, serviu de inspiração para o filme. Nas fotos de Giacomelli, uma atmosfera de intimidade entre os personagens se instala a partir da brincadeira, do jogo.

Também como as fotos de Giacomelli, o curta metragem trabalha contrastes para gerar significação. Giácomo começa a questionar-se sobre a escolha de tornar-se padre e decide sair caminhando pelas estradas, errante. As imagens de convívio com os colegas dão lugar a longos planos abertos em que o personagem se desloca sozinho por paisagens muito amplas e vai ao encontro das pessoas comuns. Agora, a batina negra de seminarista contrasta com os lugares por que passa, com as roupas das outras pessoas.

Mas, se o contraste pode ser facilmente visto, ele parece não ser tão sentido por Giácomo. Juntando-se a um grupo de torcedores de futebol, ele conversa animadamente. Nos planos documentais na praia, a câmera, como o personagem, busca o prazer e a espontaneidade da vida cotidiana: estar entre amigos, escutar o rádio, tomar sol. Em momentos efêmeros, como o sapateado de um menino que corre de uma onda, há uma beleza rara e pueril. Apostar na simplicidade das coisas para nelas vislumbrar sua grandeza e complexidade parece ser a escolha do diretor, assim como a do personagem. Neste sentido, o plano da rede de pesca sendo lançada ao mar revela um olhar atento, que sabe produzir, a partir de elementos simples, situações significativas: é o tempo investido na imagem da rede em movimento que provoca sua extrema força dramática. Da mesma maneira, o mar se apresenta como recurso expressivo de extrema importância para trazer uma gama de significações à história. Na praia, o mar é domesticado; num barco, produz instabilidade. Quando Giácomo bóia na água, o mar torna-se uma moldura dourada, evocando um corpo sagrado, como o de Cristo.

Giácomo busca respostas para questões próprias e particulares, mas parece encontrá-las onde sua vocação o leva para o encontro com a emoção do outro. Ao consolar parentes de um homem morto ou jogar futebol com crianças na areia, ele vive a dor e a alegria dos homens comuns. Como eles, Giácomo erra e acerta, perde e ganha, luta pela vida.

Ao final do filme, os planos de um céu em tempestade sob a narração vibrante da vitória italiana na Copa do Mundo trazem para uma dimensão humana algo do imponderável da existência. Onde encontrar o “ponto de encontro entre a verticalidade de Deus e a horizontalidade dos homens”? Como responde o padre que acolhe as dúvidas de Giácomo no início do filme, cabe a nós arriscar.
Rita Toledo

Desenho de David, de Iván Morales


O espanhol “Desenho de David” é um filme sobre jovens. A primeira coisa que me veio à cabeça é que os jovens no cinema estão quase sempre perdidos, sem rumo e sem propósito. Seja como for, o crucial aqui não é a história e sim a forma como o personagem principal a registra. O protagonista não é o David do título, mas Pons, um garoto de talento. Bom desenhista, ele grava suas memórias através dos traços no papel. Mas não todas elas: apenas os momentos felizes, para que ele não os esqueça. Sobre David, pode-se dizer que seja o personagem principal da vida de Pons e seu melhor amigo. Ele aparece em todos os desenhos do rapaz, sempre sorrindo, esboçando uma gargalhada. David representa a alegria dos dias de Pons, com sua jovialidade inconseqüente.


A maior parte das imagens é em preto-e-branco, para dar a idéia de uma vida sem cor. Afinal, completando o que eu já havia dito, os jovens no cinema são normalmente personagens perdidos, angustiados, que vagam sem propósito. Apenas os desenhos (e um episódio captado em vídeo por um personagem dentro do próprio filme) são coloridos. E se os desenhos são a representação dos bons momentos de Pons, faz sentido que sua vida ganhe cor no papel. Pensando de uma forma mais ampla poderíamos entender ainda outra idéia nas entrelinhas: a de que a vida só tem cor no registro. Dessa proposta resulta uma fotografia linda, um elemento de luxo que acrescenta o trabalho bem feito que é este filme.


Durante uma festa tudo muda para os dois amigos. David comete um crime inesperado e a partir dali a relação entre os dois e o cotidiano não poderiam mais ser os mesmos. A alegria jovial estava irremediavelmente ameaçada, talvez perdida. Por isso, Pons rasga os seus desenhos: as boas memórias com David que não existiriam mais. O amigo pede que ele o desenhe, mas Pons não consegue delinear o rosto transtornado de David. Com uma história engraçada, o desenhista arranca gargalhadas do amigo e sua expressão alegre vai para o papel. Fica claro, então, o que já se pôde perceber numa cena em que Pons e uma moça voltam de ônibus da festa: ele não consegue (e não quer) representar coisas ruins no caderno. Isto mancharia suas memórias felizes, "tão raras", como ele reclama.


O filme em momento algum encontra problemas para se expressar. Ao contrário, segue seu rumo com segurança. "Desenho de David" é visualmente bonito, além de coeso e sincero no que diz respeito à narrativa. A criatividade e a capacidade de transmitir idéias através dos filmes (afinal, há por aí dúzias de cinematografias que não conseguem o mesmo feito) faz do cinema espanhol um dos mais curiosos de hoje em dia. Este curta-metragem humilde e doce não envergonha seu país.



(Isabella Goulart)



"Desenho de David" está na Competitiva Internacional 5.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Folhas secas


É muito bom quando vamos a um festival de cinema, especialmente nos de curtas, e percebemos que os programadores realmente estavam preocupados em criar sessões com obras que dialogam, seja direta ou indiretamente. Esse tem sido o caso da Curta Cinema deste ano. Fiquei buscando apelidos carinhosos para o programa 4 da competição nacional. Pensei em “Capitão Planeta”, “Floresta amazônica”, dentre outros... Cheguei a “Folhas secas”, que não é mais propriamente um apelido em si, mas sim uma imagem que se relaciona bem a três dos filmes da sessão. É bom deixar claro que nenhum deles propõe nenhuma reconciliação com toques de romantismo. São obras que estão pensando como tornar possível e mais problemática a já tensa relação homem e natureza, e homem e homem, contemporaneamente, em inícios de século XXI e perante um alarde geral tanto quanto aos problemas ambientais, quanto aos problemas sociais e relacionais entre os seres.


Abrindo a sessão, “Outono”, de Pablo Lobato. Gosto muito da construção das imagens. Parece que a direção opta por intercalar planos médios dos personagens com planos de detalhes, criando um contraste de pontos de vista interessante. Esses dois pólos são trabalhados ao longo do filme, se transformando em um confronto mais amplo de ambiências. De um lado, um estranho homem que adentra uma residência pseudo-vazia. Do outro, um indivíduo cansado, no melhor estilo “chega-em-casa-toma-banho-deita-e-dorme”. O embate é muito discreto, mas percebemos que enquanto de um lado a rotina parece saturar o proprietário da casa, do outro notamos um esforço em fazer aquele espaço físico ter sentido, através de um carinho para com as até então mórbidas plantas. Aonde isso vai dar? Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? (uma página de jornal nos pergunta) Cada um que veja da sua forma, já que Pablo Lobato torna as últimas atitudes de seus personagens um tanto quanto dúbias... O que de nenhum modo é ruim, já que podemos ler essa incerteza como um reflexo de nossos próprios anseios e insegurança perante essa relação humano-vegetal-humano.


“Edifício Copan” (ou “Copan – até onde seus olhos alcançam”, escolha seu título favorito, querido leitor), mesmo que não problematize a natureza em si, a utiliza como comparação com o tal “maior conjunto habitacional” do mundo. Da mesma forma que ao conhecer melhor as baleias conheceremos melhor os habitantes dos oceanos, conhecendo os porteiros do Copan conheceremos melhor o edifício e, conseqüentemente, os humanos como um todo. Quem sabe, um dia, consigamos nos dedicar igualmente aos dois pólos, sem haver a necessidade de ficarmos retidos às classificações. Baleias, moradores e trabalhadores do edifício todos juntos. Talvez um dia deixemos de ser mero contexto e cheguemos ao tão desejado estágio de texto, proposto pelos três diretores do curta. A investigação aqui se dá, inicialmente, de fora para dentro. A narração em francês contribui para essa leitura. Seria um documentário gringo sobre o Copan? Num segundo instante, os fluxos de imagem ficam mais intensos e começamos a nos perguntar se esse (pseudo)documentário não seria muito mais uma investigação poética de dentro para fora.


Se no primeiro curta aqui comentado existe um personagem que pode ser lido como uma representação dessa “natureza que está logo ali” e, no segundo, percebemos uma comparação que visa mais a demonstração do desequilíbrio entre os próprio hominídeos, “Um ramo” é um filme que me causa maior sensação de urgência. Aqui o movimento é literalmente de dentro para fora; nossa personagem principal é uma Dafne “pós-moderna”. O processo de metamorfose soa irreversível. Por outro lado, ela tenta podar esses ramos que vão surgindo. Enquanto isso, nós observamos as suas outras diversas formas de tentativa de domesticação. É o peixe no aquário, é o cortar a cebola que acaba por proporcionar lágrimas... Tudo será inútil. Como diz muito bem (mas de forma um tanto quanto fútil), uma mulher com quem ela encontro dentro de um supermercado, “Criança não tem que ficar trancafiada dentro de apartamento”. Eu estenderia essa afirmação: e quem tem que ficar trancafiado dentro de qualquer espaço fechado? Mas será possível não o fazermos? Ainda há espaço para o tal “respirar o ar lá fora”? E se, um dia, esses ramos resolverem respirar o ar aqui de dentro? Ou melhor: e se eles tomarem esse espaço que consideramos (erroneamente) totalmente nosso? O título temático da Bienal de São Paulo do ano passado parece cair muito bem aqui: “Como viver junto”.



"Outono", "Edifício Copan" e "Um ramo" estão na sessão Competição Nacional 4.


(Raphael Fonseca)

Arquitetura de morar, de Antonio Carlos da Fontoura

"Arquitetura de morar" (1975) não é apenas mais um retrato sensível de um artista e de sua obra, como outros filmes de Antonio Carlos da Fontoura exibidos no Curta Cinema 2007. Heitor dos Prazeres" (1965), "Ver Ouvir" (1966), "Outro Preto e Scliar" (1969) e "Wanda Pimentel" (1972) são também curtas primorosos do cineasta, que dedicam-se a investigar a obra de pintores e escultores através dos depoimentos dos artistas e da elaboração de uma abordagem simples, mas de resultado estético extremamente sofisticado.

No filme sobre o arquiteto José Zanine, o caminho seguido é semelhante ao traçado nos outros curtas. Mais uma vez, o artista “documentado” narra, em off, um texto de sua autoria, enquanto assistimos a imagens das obras e do seu cotidiano de trabalho. Este curta, entretanto, sintetiza e explora de forma magistral uma série de elementos utilizados nos outros filmes. Aqui, percebemos como o interesse do diretor pelas formas está intimamente ligado à dimensão humana envolvida tanto na elaboração das obras quanto na relação que estas passam a ter com a vida – de seus autores e de quem quer que possa vir a experimentá-las.

Zanine afirma, e Fontoura sublinha com imagens: "homens e ferramentas constroem as casas". Formas, contrastes e degradés, gerados por sombras que se projetam nas paredes e pisos em construção, depuram-se em linhas, traços, grafismos. Mas a paisagem também é fundamental, tanto na obra de Zanine quanto na leitura que dela é capaz de fazer o cineasta. O mar e os morros que cercam uma casa na Joatinga, no Rio de Janeiro, penetram o espaço construído e são reenquadrados pela lente de Fontoura através dos vãos de janelas e batentes de portas de Zanine. Em um plano belíssimo, a laje da casa se sobrepõe à montanha ao fundo, e um dos operários sobe o piso íngreme rapidamente, como se fosse saltar para o morro. A casa se integra ao ambiente e a imagem captada pontua e evidencia o olhar do arquiteto.

Como o título do filme indica, a obra é feita para ser vivida. Aos poucos, os interiores vazios das casas são ocupados por sofás, almofadas, redes de dormir. A presença humana se insinua, preenche os espaços com sua pessoalidade e, porque não, com seu afeto – alguém escolheu uma almofada amarela, vai balançar-se na rede vendo a vista; vai acordar, trabalhar, dormir entre as paredes projetadas. Para Zanine, assim como para Fontoura, a arte é feita para morar.

Rita Toledo

Mais um movimento de Michel Gondry

Ver a sessão Michel Gondry no Curta Cinema faz pensar em até que ponto o cinema se aproxima ou não das outras artes visuais. No entanto, esta não é uma reflexão que busca a essência do cinema, ou ainda, a do videoclip, mas que é mais uma sensação que a sessão de Gondry provoca no espectador ao sair da sala de exibição: uma vontade de ver mais videoclips na tela grande e no escurinho do cinema O que é o cinema? O que são as imagens? Quais são os limites entre alguns meios de expressão audiovisuais? Apesar dessa ser uma pergunta em evidência nos tempos atuais, Gondry está longe de provocá-la como uma simples repetição de um discurso em voga.

A sessão Michel Gondry é composta basicamente por videoclips, mas mesmo as animações ou os filmes cujo caráter é bastante experimental ou caseiro, como é o caso de Os 24 anos do meu irmão, trazem neles uma caráter de videoclip, no que essa linguagem tem de rápida, imediata e no que muitas vezes é imbuída de tecnologia e possibilidades técnicas que o vídeo traz. A exceção da sessão Gondry, é A carta, o caso mais ligado ao que se entende tanto por curta-metragem como por cinema. Mas se A Carta é o representante de sessão que mais chega perto ao modelo de curta-metragem que compõe o restante do festival, por que Gondry comporia uma sessão dentro do Curta Cinema, já que essa sessão é composta principalmente por videoclips?

Talvez porque Gondry seja um homem do movimento, que se interessa por como os movimentos e as camadas de estados das coisas fazem parte de uma questão de ritmo e vida, que nunca pára. Os clips de Gondry nos trazem mesmo esta sensação: queremos assegurar algum daqueles fragmentos de movimentos para nós, mas não é possível, e é desta impossibilidade que vem grande parte da beleza da sua obra, já que ela traz tanto a vontade do homem de dominar o movimento das coisas, como a impossibilidade disso acontecer, pois dominar o movimento, neste caso, não é ter consciência do seu fluxo, mas sim de suas interrupções. Isso se expressa de forma mais direta em The hardest button to button (White Stripes), Drumb e Drumber e em Let forever be (Chemical Brothers) , ou de forma mais sugerida como no clássico clip do Daft Punk, Around the world. Gondry desconstrói o movimento e o reenquadra novamente, em um novo fluxo.

Around the world também revela um outro interesse de Gondry: os fragmentos visuais são muitos, as múltiplas camadas das imagens estão lá, mas elas não são apenas superficies Elas fazem parte de um todo, que norteia todos aqueles robôs e figuras não-humanas que giram ao redor do mundo do Daft Punk, ainda que em diversos sentidos e formas. Se fazem parte de um todo e se o remixe das camadas e fragmentos de Gondry estão longe de uma fragmentação que busca sugerir uma fragmentação rasa, Yoga (Björk) leva isso até a sua profundidade maior: a rachadura é a da terra, é a do magma, da profundeza do que vem a formar o mundo. Neste sentido, Yoga e Around the World sugerem mundos que parecem opostos, mas que se unem nos fragmentos e interrupções dos movimentos de Gondry, humanos ou nem tanto. Um mundo que ultrapassa fronteiras e limites espaciais e outro que é concentrado em um círculo, mas que acabam ali numa figura que é tanto estranha quanto humana .

Essa relação de Gondry com o que há profundo não é algo existencial, mas ao contrário, é o lado instintivo do homem, seu lado marginal, material, orgânico. One day é a manifestação mais extrema disso, mas Bachelorette e Ma Maison também trazem isso de forma evidente, com a imbricação universo-homem-animal. Assim, é possível ser tomado pela forças misteriosas da natureza, assim como é possível tornar-se, de forma mágica ou assustadora, por uma porção animal. Gondry gosta da natureza humana, gosta da rachadura da terra, do vulcão que extravasa. Por isso, além de tratar de movimento, Gondry trata de paisagens, e principalmente de como atravessá-las em maior ou menor velocidade. As figuras de Gondry certamente não estão no centro do mundo, sob os focos, mas elas têm toda a atenção. Elas seriam como Tiny se sempre fossem frágeis, mas elas também estão no topo do mundo, capazes de ver toda a paisagem possível, como a eletrobótica e fascinante Bjork em Yoga. Não há lugar estável no mundo e as imagens de Gondry trazem isso com toda a intensidade.

Por último, não há como deixar de comentar que, depois de passar uma sessão que nos coloca diante de vídeos que pensam o movimento, paisagens e passagem entre todas essas imagens, assim como a própria noção da imagem em movimento, curiosamente surge um clip que é a cara da vinheta do Curta Cinema 2007, com imagens feitas de peças lego em constante movimento. Por causa dessa bela coincidência e também por causa de toda a magia que nos traz Gondry, parece que o clip foi feito para comprovar o enquadramento dos seus clips dentro do festival de curtas metragens É preciso montar e desmontar, criar novas relações com todas as partes e ir em busca de outras imagens.

Juliana Cardoso

Cine Odeon – sáb 27 de out 17h30
Ponto Cine – seg, 29 de out 16h
Cine Glória – ter, 3º de out 19h30
Cine Santa – qua, 31 de out 18h

Bricostory

Bricostory, de Andreea Padureanu [Lar Feliz]
(Romênia, 2007)

Bricostory é o espaço em que a relação entre os personagens Ana e Paul se revelará uma relação que passa longe do que poderia-se esperar de um casal prestes a formar um novo lar. Um supermercado, ou ainda, uma espécie de mercado Wallmart, daqueles em que parece ser possível comprar desde os pisos da casa, até móveis ou artigos mais descartáveis.

Apesar de se concentrar num espaço como o supermercado, Bricostory tem a intenção de estar muito além deste espaço. Ou melhor, apresenta o mercado como um local para o desenvolvimento do desentendimento entre os personagens, como se os seus atos e movimentos de procurar objetos básicos para o lar fossem um pretexto para a contraposição com um entendimento mínimo que faltaria a um casal que formula o seu futuro lar. Andreea Padureanu tem a intenção de estar para além da situação de Bricostory, de usar o espaço com uma espécie de metáfora para um momento do casal, como a diretora concretiza na cena em que, depois de muito andar pelos corredores do mercado e de se desentenderem em silêncio, Ana e Paul decidem-se sentar numa dessas cozinhas montadas em lojas de imóveis. O enquadramento deste plano já diz muito sobre o que Padureanu parece buscar: sublinhar o que acontece entre o casal, no espaço entre eles, ou ainda, o que falta nesse espaço. Uma intimidade em momento de crise e ambigüidade, mesmo que de forma momentânea. A cozinha faz parte de um espaço que permite que o casal saia da ação de montar uma casa para já se encontrar dentro dela, tão artificialmente como eles já se encontram um em relação ao outro naquela situação. Distantes, separados por diversos objetos de casa, que poderiam uni-los, mas que estão aqui para indicar movimentos opostos, desencontrados.

O uso do supermercado como estereótipo – um lugar em que as relações não acontecem - não impede que Padureanu tenha olhares muito particulares para ele, o que a diretora consegue construir através de alguns ângulos e enquadramentos que constroem uma visão singular para o supermercado. No entanto, Bricostory levanta uma pergunta que pode ser útil para todo o cinema, toda a representação de uma estória. Até que ponto a utilização de um espaço como motivação para a revelação da falta de comunicação entre dois personagens não se nutre de uma relação já bastante estereotipada e revista no cinema? É claro que o problema principal não é o estereotipo em si – o supermercado como meio da problematização da relação de um casal – mas até que ponto o estereótipo é capaz de sustentar uma crise entre dois personagens. Assim, sentimos que já vimos essa história algumas vezes antes. Mas o supermercado não é suficiente para a diretora apresentar essa crise e Padureanu sente necessidade de ir em busca de mais um elemento que construa a distância entre o casal: o atendente atencioso, como um contraponto ao marido ocupado. Este é um filme de contrapontos, bem no espírito que o título em português traz em relação a situação que o filme apresenta.

Esses aspectos formais não são evidenciados aqui apenas por uma questão estética e de composição de planos, mas porque o melhor e pior de BricoStory vêm dessa mesma questão. Se o plano citado anteriormente tem a capacidade de representar uma situação para a qual a diretora almeja alcançar através de uma solução estética, ele também indica que tal composição não é suficiente para sustentar um filme. Aliás, soluções estéticas não faltam, e insinuam, de forma eficiente, como todos aqueles objetos mais submetem o casal do que o integra a um lar feliz.

Bricostory reafirma como o supermercado é um lugar de passagem, através de um plano aberto do supermercado, com pessoas que passam. Mas uma vez a diretora é eficiente em sua representação, como nos diversos exemplos em que constrói a distância entre os dois personagens, em espaços opostos ou até mesmo no fora de quadro, já que Paul precisa se ausentar com freqüência para atender ao celular. Mas por ser um filme eficiente, Bricostory permite indagar: por que não ir além do que uma imagem pode nos dizer tão imediatamente?
Juliana Cardoso

Cine Odeon – sáb 27 de out 15h30
Cine Santa – qua, 31 de out 20h

"A Queda da Casa de Usher", de Jan Švankmajer


Em 1928, o conto “A Queda da Casa de Usher”, de Edgar Allan Poe, rendeu um dos melhores filmes da avant-garde francesa com o comando de Jean Epstein e assistência de direção de Luis Buñuel. Em 1980, o tcheco Jan Švankmajer realizou um curta-metragem não menos apegado à vanguarda a partir do mesmo conto. Lorde Roderick Usher é um marido devoto, preocupado com a saúde da esposa que definha a cada dia. Quando ela morre, ele se torna cada vez mais insano, pois acredita que ela foi enterrada viva. Episódios incomuns e misteriosos passam a acontecer na assustadora casa de Usher. A história é contada pelo ponto de vista de um amigo de Usher, que vai à mansão após receber uma carta onde o marido fala de seu desespero diante da saúde da mulher. Vista sob a perspectiva de uma terceira pessoa, que se espanta com tudo o que acontece, a trama nos parece ainda mais assustadora.


O macabro no filme de Epstein se contruía pela experimentação visual: sobreposições, trabalho com a luz e com o foco, enquadramento de elementos inanimados no espaço. Mas eram também de grande importância a expressão anormal dos atores e a música. Švankmajer não usa atores e leva a experimentação plástica ao extremo. Com a substituição do humano por objetos mortos e imagens irracionais, ele quis provocar um envolvimento absoluto dos sentidos durante o filme. Surrealista a um nível quase purista, ele sai vitorioso. Mas a necessidade de mexer com os nossos sentidos não está limitada a esse curta-metragem, sendo recorrente em outras de suas obras: tato, olfato, paladar e, claro, visão são aguçados pelo diretor na tela em duas dimensões.



Švankmajer é autor de um cinema assombroso. I
ncômodo e bonito ao mesmo tempo, sua obra nos deixa extasiados pela própria capacidade de criar uma imagem. “A Queda da Casa de Usher”, colocada em termos rasos, é uma mistura de animação em stop motion, enquadramento de objetos inanimados e narração em terceira pessoa. Vista de forma mais ampla, é o opsoto do convencional numa narrativa e um episódio sinestésico. Švankmajer atingiu resultados únicos. O sobrenatural do conto de Poe está aqui e não precisa de imagens lógicas ou racionais. Existe melhor sem elas, quem sabe. Como Epstein, Švankmajer realiza um filme fantástico (no sentido mesmo de fantasia, do absurdo), intenso e ainda mais cheios de experiências físicas a nos oferecer. Se os cineastas contemporâneos que priorizam a forma tanto quanto o conteúdo (ou mais) bebem, obrigatoriamente, nas vanguardas dos anos 1910 e 20, podem ter se influenciado também pela capacidade de experimentar de Jan Švankmajer.

(Isabella Goulart)



"A Queda da Casa de Usher" está na retrospectiva Jan Švankmajer 2, que voltará a ser exibida no domingo 4, às 17:30, no Odeon.

Foco Argentina 1 e 2

As primeiras imagens de “Tire dié” (1958) filme célebre de Fernando Birri, mostram tomadas aéreas da cidade argentina de Santa Fé. A voz do locutor despeja informações quantitativas: quantos habitantes, quantas escolas, indústria e comércio, latitude e longitude. Se primeiro sobrevoamos o centro, logo a paisagem urbana, povoada e construída, dá lugar a planícies vazias, em que poucas casas pobres se dispõem ao redor da via férrea.

Como grande parte das produções documentais brasileiras da época, o filme argentino anseia por dar conta de uma realidade complexa: quer compreendê-la, formular teses e explicá-las ao espectador. Na apresentação, uma cartela anuncia que o filme é “a primeira enquête social filmada”. A voz do locutor esclarece e informa, mas, ao mesmo tempo, aborrece pela enorme quantidade de dados que acabam por perder-se ao longo da narração.

A vontade de criar uma distância do “objeto” filmado e analisá-lo sociologicamente, no entanto, dá lugar a uma abordagem menos autoritária quando das imagens áreas passamos a um pequeno grupo de crianças que vivem no subúrbio. Sua atividade para ajudar as famílias pobres é correr junto ao trem gritando aos passageiros “Tire dié!” (“jogue dinheiro!”). Equilibrando-se na ponte sobre a qual o trem passa, as crianças arriscam a vida para recolher moedas que as pessoas atiram pela janela.

Longos planos gerais permitem aos meninos transitar pelos campos desertos. A câmera os segue até suas casas e mostra as dificuldades vividas pelas famílias: desemprego, moradias precárias, doenças. Neste contexto, o dinheiro conseguido pelas crianças no trem é parte importante de sua renda. Evidenciando a forte influência do Neo-realismo, o diretor parece então permitir que a realidade invada o filme, deixando de lado a ânsia de a todo tempo controlá-la.

A temática social de “Tire dié” aparece em grande parte dos filmes reunidos na sessão Foco Argentina 2 - Anos 90. Embora nenhum dos curtas seja documental, todos tratam de situações marcadas pelas noções de precariedade, violência e abandono. Em alguns deles, os campos desertos da planície argentina também vêm servir de metáfora para um país – e também um cinema – que procura caminhos para se desenvolver.

Em “Onde e como Oliveira perdeu a Achala” (1995), de Andrés Tamburnino, dois homens em busca de uma cidade de nome americano se perdem por estradas esburacadas e vilas perigosas. Aqui, a ironia começa pelo nome dos personagens, que se referem a dois grandes produtores dos anos 1980. O cinema argentino desta época foi duramente criticado pela geração de cineastas da geração seguinte, militante e socialmente engajada. Perdidos e furiosos, os dois brigam e Oliveira acaba por matar Achala.

“Rey Muerto” (1995) de Lucrecia Martel, conta a história de uma mulher que tenta fugir com os filhos do marido violento que dita as regras em um vilarejo pobre no campo argentino. Aqui, a mise-en-scène melodramática, a narrativa não linear, a trilha sonora constante que enfatiza as ações dos personagens e o uso não naturalista da luz produzem um excesso de estilização que aproxima o filme de estéticas publicitárias.

Olhos de Fogo (1995), de Jorge Gaggero, é outro filme que aborda a crise social Argentina, mas sob o viés de uma espécie de drama psicológico. As imagens de um grupo que saqueia um supermercado, de forte apelo documental – a câmera é instável, corre desviando-se das pessoas – parecem antecipar as imagens produzidas ao longo dos acontecimentos de dezembro de 2001 no país. Um dos jovens é Julian, filho de uma prostituta. Acompanhando o cotidiano do garoto audacioso, que transita pelo vilarejo sem rumo, conseguimos caracterizar e acreditar no personagem, cuja veracidade também advém da boa atuação de Jorge Huertas.

Rita Toledo

Esconde-Esconde


Esconde-Esconde é daqueles filmes cujo mote central está o tempo todo se multiplicando pela narrativa. O tal mote, no caso, pode ser entendido como a problematização do ver/não ver, traduzida no filme na tentativa incessante do personagem principal em esconder aquilo que não quer ver. Assim, o diretor Álvaro Furloni formula uma espécie de estrutura reflexiva, auto-centrada, como um jogo de espelhos, em que cada plano traduz ou reinterpreta de alguma forma essa idéia central, que passa a ganhar corpo em pequenas metáforas que flutuam em torno da trama principal (quantas piadas com o termo esconde podemos contar?). Como uma macroestrutura conceitual que está o tempo todo se interpondo nos caminhos trilhados pelos personagens do filme ao longo do espaço diegético.

A direção é extremamente segura, o que de alguma forma acaba otimizando este processo, que é seguido à risca, para o bem e para o mal. Na melhor das tentativas, Furloni posiciona sua história em plena era do panoptismo. Uma era que pode ser entendida não apenas como a era da vigilância, mas a era do excesso das visões, do excesso de imagens. E ver tudo o tempo todo sufoca. Às vezes, é necessário simplesmente não ver, como é o caso de Amaro, protagonista que perseguimos. Esconder o óbvio para esconder a dor (viram como o mote se multiplica? Até mesmo fora do próprio filme...). E tudo isso diante de uma sociedade para a qual esse escolher não ver é simplesmente taxado como loucura.

Mas é óbvio que para cada escolha há sua contrapartida. Aqui, a mais dura delas é sentida num golpe do roteiro: como haveria de se fazer um filme cujo mote está na palavra esconder sem que se escondesse nada justamente do espectador? Diante disso, como que por coerência de sua própria lógica interna, Esconde-Esconde opta pelo caminho mais fácil, pela vítima ideal – o sempre tão crédulo e tão tapeado espectador – para dar continuidade a seu processo de multiplicação de sua idéia central. O que não chega a comprometer o o que vinha sendo desenvolvido até então. Cabe a cada espectador decidir individualmente o que parece ser quase um dilema moral: se um filme como este, sobre o ver/não ver, cuidadosamente estruturado em função de uma reflexividade que irá o tempo todo re-significar esse seu mote principal, tem na omissão narrativa, na ocultação de informações ao espectador, um dispositivo justificável.
(Calac Neves)
Esconde-Esconde está na sessão Competitiva Nacional 3.

Estesia

O que é dar o fatídico primeiro beijo? Perguntemos melhor: como é dar o primeiro beijo, segundo Esmir Filho? Parece difícil não ter em mente alguns de seus outros filmes, que apontam para tantas direções, tais como uma homenagem ao teatro (“Ato 2 Cena 5”) ou a pretensão de criar um universo de fábula (“Ímpar Par”). Podemos continuar nessa certa “tradição numérica” em Esmir Filho e, dessa vez, pensarmos sua relação para com os pontapés iniciais. O beijo aqui é um estudo de caso.


Esse beijo não é mera troca de saliva. Talvez nem seja troca alguma. Nossa personagem principal, a futura adolescente que tanto reflete sobre esse ato um tanto quanto invasor e íntimo (como muito bem colocou o diretor recentemente), está apenas cedendo às aparentes pressões sociais ao seu redor, que a empurram, com luvas de pelica, para o encontro não do “príncipe encantado”, mas sim do “garoto qualquer”. Ela apenas irá bater o cartão do ponto biológico, deixando de ser a estranha dentro do seu grupo de amiguinhas. O problema é que o processo todo não é tão simples assim.


Tem um plano desse curta que muito mexe comigo. É aquele em que a jovem está a caminhar, na chuva, com um pedaço de papel celofane rosa. Ela tem a boca aberta e sua língua capta essas gotas que caem. Pode ser uma total projeção de preferências artísticas minhas, mas essa imagem lembra (e muito, eu diria) algumas fotografias do Hélio Oiticica circulando com alguns dos seus objetos, como os ditos “parangolés”. Referência óbvia ou não (e acho mais provável que não), “Saliva” trabalha com conceitos de estesia presentes também na produção artística do carioca.


É mergulhar numa piscina sozinho ou acompanhado. É se entregar ao acaso, como ficar com a língua aberta deixando cair quaisquer gotas de chuva. É ser levado pela efemeridade da coisa, sentindo-se todo molhado sem talvez o estar. A garota está lá, todos os sentidos ativíssimos, todas as “amigas” ao redor. Mas, ao mesmo tempo, o que sobrará de concreto dessa experiência? Talvez nada. Talvez tudo. Logo, ela também está extremamente sozinha, cega, muda, surda e paralizada.


O filme não dá muitas respostas; as imagens me parecem mais perguntas. Se o estopim são as (talvez) irritantes companheiras da personagem e a óbvia explosão é o momento do beijo, as conseqüências do estrago (se é que existem) não são mostradas. E a vida segue, ainda sem sentido, como quando se abre e fecha os vidros elétricos de um carro, em dia de chuva. Por que eu fiz? Sei lá, porque eu tava com vontade. E ponto.


"Saliva" está na sessão Competição Nacional 1.


(Raphael Fonseca)

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Metro e meio, por enquanto (Five feet high and rising, Peter Sollet, 2000)


Metro e meio, por enquanto narra momentos da vida de Victor, um garoto às voltas com o início da puberdade que, como seu amigo Carlos, precisa desenvolver meios de interagir com as mulheres. Não diferente dos outros jovens do bairro pobre de Nova York onde vive, Victor passa boa parte de seu tempo perambulando pelas ruas. Acontece que dentro desse microcosmo do qual faz parte, não existem muitas regras de convivência social. Assim, se Carlos fica com meninas que têm o dobro de seu tamanho, um rapazinho ainda menor circula entre os grandes, sempre à procura de alguém para brincar, mas volta e meia flagrando cenas de interação entre pessoas de sexo oposto, para ele, ainda pouco compreensíveis.

É com extrema crueza que se filma esses fragmentos do cotidiano desses jovens. Não há preciosismo estético na fotografia, tampouco na direção de arte, pois na mise-en-scène de Peter Sollet nada deve chamar mais atenção que seus personagens e aquilo que se passa a eles. A mesma crueza se dá na escolha do elenco - os atores de Metro e meio, por enquanto não são extraordinariamente bonitos, como na maioria dos filmes adolescentes. Ao contrário, são desproporcionais (uns com os outros e mesmo no próprio corpo) e claramente afetados pela violenta turbulência hormonal que marca esse processo de transformação.

O mais impressionante em Five feet high and rising (no original), contudo, é a forma como a câmera vaga errante e sem amarras pelo universo de seu protagonista. Isso porque, se há a definição de Victor como personagem principal e de sua história como central, nada impede o filme de realizar suas digressões narrativas. Falo da extrema importância que se dá à história de Donna e Aaron (a menina que é constantemente rejeitada pelo namorado) que mal se cruza com a história de Victor, falo também da longa e belíssima seqüência em que Victor, junto com um personagem que não conhecemos (e sequer conheceremos), ensaia algumas batidas em um tambor enquanto espera que Amanda, a garota que gosta, apareça à porta de casa.

É precisamente essa liberdade narrativa, essa permissividade e abertura às digressões, ao que não é meramente funcional, que faz de Five feet high and rising um grande filme. Um relato quase documental (e a câmera na mão não é um recurso à toa) desse bonito (e constantemente mal filmado pelo cinema) rito de passagem da infância à adolescência.


Metro e meio, por enquanto passa no programa 1 da restrospectiva 10 anos de Cinéfondation.


(Alice Furtado)

O redentor da Petrobrás


A regra de comportamento social em festivais, criada não sei por quem, diz que você só aplaude um filme se gostar dele. Cinema é uma coisa subjetiva, o que dá gosto a uma pessoa pode desgostar outra. Então, imagine quão descabido deve ser um filme que não ganha o aplauso de ninguém. Na sessão Curta Petrobrás exibida ontem no Odeon isso aconteceu mais de uma vez e com razão. A impressão de que os realizadores querem quebrar com a estética e a narrativa clássicas pelo simples motivo de ser diferente, no entanto, não se restringe aos curtas exibidos na sessão, mas ao grosso da produção brasileira.


Os dogmas existem para serem quebrados e os paradigmas para serem superados. As imposições clássico-narrativas devem ser revistas – e já foram exaustivamente pela nouvelle vague e as vanguardas subseqüentes – mas isso quando se tem um propósito. Insistir nessa idéia sem que haja por trás dela uma propota que o diretor compreenda e domine bem resulta em filmes irrelevantes. O curta-metragem, muito mais que o longa, abre a possibilidade de experimentação. Mas, num país como o nosso, onde fazer cinema é uma empreitada tão difícil, pensei durante aquela sessão que os recursos da Petrobrás poderiam ter tomado outro rumo.


“Antônio Pode”, de Ivan Morales Jr., é tão vazio quanto a própria sinopse: “Um homem olha pra frente, sereno”. E nada mais que isso. O rótulo de "experimental" não serve como desculpa. “A Última Viagem de Arkadin D’Y Saint Amér” (Sergio Zeigler e Cassilda Teixeira da Costa) e “Radicais Livres” (Marcus Bastos), ambos documentários, empregam estéticas que em nada contribuem para a dramaticidade. Ao contrário, muitas vezes prejudicam a narrativa. “Fluxos”, de Juliana Penna, é um filme correto, mas os seis minutos em stop motion não empolgam, sobretudo se você já viu um filme de Chris Marker.


Dois documentários simples e metalingüísticos foram as boas surpresas. “Pixinguinha e a Velha Guarda do Samba”, de Thomas Farkaz e Ricardo Dias, intercala imagens dos músicos filmadas por Farkas no Parque do Ibirapuera em 1954 com o seu depoimento sobre a experiência e a recuperação do material. Aquela primeira filmagem gerou esse novo curta, nostálgico e agradável. “Cine Zé Sozinho”, de Adriano Lima, gira em torno de um homem humilde no interior do nordeste, premissa das mais batidas em documentários brasileiros. Zé Sozinho, sujeito simples, mas apaixonado por cinema, dedicou a vida a exibir filmes em cidadezinhas do nordeste, encantando platéias que, sem ele, jamais teriam contato com aquela arte. Sem querer inovar ou romper com nada, usando a estrutura mais clássica de uma não-ficção para contar uma história de vida que lhe encantou, o diretor realiza um filme sensível e envolvente. E emociona como nenhum dos curtas “modernosos” foi capaz de fazer.



(Isabella Goulart)

Michel Gondry


Enquanto a Competitiva Nacional exibida no mesmo dia levantou dúvidas e decepcionou alguns espectadores, uma coisa foi consenso no sábado 27: Michel Gondry é incrível. “Sempre tive o fetiche de ver os curtas do Gondry exibidos no Odeon”, foram as palavras que Fernanda Taddei usou para abrir a sessão. Impossível não compartilhar de tal fetiche. Contador de histórias ou de história nenhuma, Gondry é um mágico, um vanguardista, um romântico, um matemático, um esteta e um inventor. Um cineasta particular que se apropria da experimentação visual das vanguardas do início do século passado e as adapta à sua idéia de arte contemporânea.


Ele olha o mundo em 360 graus. Em suas mãos tudo é incrivelmente complexo – ou, ao contrário, simples? No lugar da unidade há a surpresa – ou a certeza de que podemos esperar um trabalho sempre inventivo, seja ele um curta-metragem, um longa ou um clipe musical? Gondry instiga os nossos instintos, a nossa maneira de perceber e receber a arte visual. Os truques não precisam ser sofisticados. Podem ser tão simples quanto os que seu conterrâneo George Meliès já realizava nos primórdios do cinema, basta apenas que sirvam a seu propósito. Não é a técnica que manda, mas a imaginação à que ela está submetida. Assim, Gondry abre as portas do absurdo e nos leva para outras realidades ou embute a fantasia no mundo real.


Em “Os 24 Anos do Meu Irmão”, um inusitado cartão de aniversário filmado, os cenários gigantes e desproporcionais lembram filmes mudos e expressionistas, por exemplo. “Um Dia” também é um vídeo que precisa de muito pouco para exibir uma criatividade rara. Um homem é perseguido pelo cocô que tenta abandonar: humor simples, estúpido e genial.


Nos clipes, Gondry cria universos tão densos e sincronizados que jamais deixamos de nos impressionar. Para Bjork, inventou narrativas complexas, metafóricas e belíssimas. Em “Around the World”, do Deft Punk Homework, montou um espetáculo de dança futurista com o espírito dos anos 90. Os vídeos para o Chemical Brothers são, para mim, os mais interessantes. O aparente jogo de espelhos que multiplica uma mulher em “Let Forever Be” é, mais que isso, uma permuta entre duas realidades e a composição visual de “Star Guitar” tem um requinte matemático impecável. Cada som da música corresponde a um elemento na paisagem e toda vez que o som é ouvido o elemento se repete, dando à imagem uma complexidade crescente.


Gondry abusa da computação gráfica, das trucagens fáceis ou do raciocínio lógico na construção do plano0 para chegar onde quer. Se eu me pergunto “Como ele fez isso” e descubro a resposta, logo estarei me questionando novamente. O segredo de um artista nato não se limita às suas fórmulas. Gondry é um ilusionista primoroso e poder contemplar seu fluxo de criatividade em tela grande é um prazer.

(Isabella Goulart)


A retrospectiva Michel Gondry será exibida novamente na segunda-feira 29, às 16:00 no Ponto Cine, na terça-feira 30, às 19:30 no Cine Glória e na quarta-feira 31, às 18:00 no Cine Santa.

domingo, 28 de outubro de 2007

Retratistas e retratados

"Câmara viajante” faz metalinguagem. Partindo do princípio de que este curta é sobre a relação entre fotografia e retrato e que é um documentário, temos um retrato em movimento sobre retratos estáticos. O diretor Joe Pimentel constrói sua obra a partir de um fluxo de belas imagens de seus cinco personagens principais em processo de captura de imagens, mesclando as mesmas com depoimentos dos mais interessantes sobre o melancólico ato de se eternizar a imagem do outro.

Este curta parece ter tanta potência devido, justamente, à importância das palavras proferidas por esses homens que, até há pouco tempo atrás, me eram anônimos. Suas frases giram em torno de questões muito caras à teoria do retrato, remetendo a questões lá dos grandes retratistas da história da arte, como Ticiano, Velásquez e Goya. Idealizar ou criar uma imagem fiel do outro? Como enquadrá-lo visualmente no espaço da tela ou, como neste caso, no pequeno pedaço de papel?

Somando a isso, é bonito perceber o esmero com que o diretor pinça imagens desses fotógrafos em processo, em embate com seus futuros retratados, seja convencendo-os a serem retratados, seja dando orientações aos mesmos sobre como devem se portar diante da câmera. Melhor que isso, só mesmo suas expressões ao verem sua imagem e semelhança no pedaço de papel. Quem de nós nunca teve esse mesmo frio na barriga ao voltarmos os olhos a uma fotografia que remete a um espaço-tempo impossível de ser retomado?

Outro filme presente no festival desse ano, que dialoga diretamente com esse documentário, é “A curva”, de Salomão Santana. Este pesquisou em um arquivo pessoal, também no interior do nordeste, aquelas fatídicas fitas VHS de festas de aniversário. Após uma apreciação desse material, ele fez uma curadoria de pessoas dos mais diversos tipos, criando uma nova obra como que de colagem daqueles pequenos momentos em que estamos sendo filmados (contra vontade ou não).

O que faz “A curva” tão bom é o fato dele não dar muitas explicações ao espectador. Você senta na sala de cinema, olha pra tela grande, vê uma seqüência de anônimos, faz as mais diversas leituras de quem sejam eles e do que estão pensando e o curta termina. Essas imagens têm um quê de tristeza, que é realçada por uma insistente música que é reproduzida bem ao fundo, criando um elo entre as imagens escolhidas pelo diretor. Salomão faz um ensaio sobre os pequenos lapsos de tempo, aqueles curtíssimos momentos em nossas vidas que às vezes duram até mesmo frames de segundo, em que estamos a nos dedicar ao nada, ao silêncio, à introspecção, a aquele vulgo "olhar vazio".

Parece que, mesmo indo em direções opostas, estes dois curtas se relacionam no que diz respeito a uma reflexão sobre a relação entre imagem e memória. O primeiro focando nos produtores de memória, suas relações com os objetos das fotografias e suas tensões em um momento em que a fotografia digital parece imperar. O segundo toma outro caminho, indo atrás justamente do que, no fim das contas, parece ser o destino de qualquer fotografia: o anonimato. Quem garante que sempre saberemos as identidades desses objetos permeados por memória?


(Raphael Fonseca)


"Câmara viajante" está na sessão Competitiva Nacional 1.
"A curva" está na sessão Competitiva Nacional 7.

Apenas dois garotos (Sérgio Bloch,2007)

São bem claras as relações de Apenas dois garotos com a teledramaturgia brasileira. Vemos os mesmos cenários, os mesmos arquétipos – uma mulher de meia-idade metonimizando a classe-média carioca, uma empregada negra e atrevida representando a classe popular – bem como uma já conhecida maneira de se decupar (um plano geral introdutório para então passar aos planos próximos, campo x contra-campo ad eternum). Há também a mesma crença simplista na dicotomia favela x zona-sul, pobre x rico, patrão x empregada, diferenças sociais intermediando as relações entre os indivíduos.

Se Apenas dois garotos talvez não encontrasse lugar na grade de programação da televisão aberta por seu final omisso, não deixa de haver, ao longo do filme, uma imensa necessidade de deixar as coisas bem claras. Qualquer cuidado com as imagens passa a ter pouca importância diante do objetivo, obsessivamente perseguido pela decupagem, de não deixar espaço para dúvidas. Dessa forma, se o diretor quer mostrar a história através dos olhos de duas mulheres, é preciso haver um plano em que uma delas assiste da janela ao diálogo entre o seu filho e o filho da patroa.

Ainda sobre a relação com a teledramaturgia, há momentos em que realmente me questiono se certas imagens não foram de fato extraídas de alguma novela. É o caso do plano geral da praia de Copacabana à noite, utilizado para marcar a passagem do tempo. A única diferença é que aqui, ao menos, o diretor Sergio Bloch tem a dignidade de não colocar a imagem em fast foward.

(Alice Furtado)

Panorama Internacional 1: As imagens e o mundo

Everything Will Be Ok, de Don Hertzfeldt

Fica claro quando assistimos ao Programa 1 da Competição Internacional a intenção de uma compilação temática na medida em que praticamente todos os filmes apresentados procuram discutir, de forma mais ou menos declarada, problemas relacionados ao mundo em sua dimensão social. A exceção – que confirma a regra – fica por conta justamente do primeiro filme, Exame, do romeno Paul Negoescu, uma breve digressão juvenil (quase pueril) sobre o ceticismo que, por fixar-se na esfera de um conflito privado, funciona como uma espécie de prólogo para o resto da sessão, composta ainda por outros cinco filmes de lugares variados do mundo.

Mas se o alinhamento temático aqui parece regra, há, contudo, dois filmes em particular na sessão que se sobressaem por uma preocupação estética em comum: a procura por uma nova forma de se relacionar com a imagem dentro do paradigma de formal do cinema. No fundo, são duas tentativas de multiplicação da imagem, que passa a circular de forma livre pelos veios da linguagem cinematográfica. Não por acaso são exatamente os dois filmes que não têm o real propriamente dito como matriz direta, se valendo de outros suportes como a gravura e o desenho.

Em Capitalismo: Escravidão, Ken Jacobs parte de uma imagem estática para, com breves mudanças de enquadramento e perspectiva, dar a impressão de movimento. Na gravura, negros escravos colhem algodão em uma fazenda, observados por um capataz. Assim, imagens diferentes de um mesmo trecho da gravura se sobrepõem por meio de flashes, dando a impressão de um movimento intermitente – como que por luzes estroboscópicas. Um movimento que obviamente jamais nos levará a lugar algum, pois jamais abandonamos a superfície da figura que serve de ilustração. Como um ciclo vicioso ilusório, que em última análise serve como metáfora para a expansão do capitalismo ao longo dos tempos: parecemos estar em movimento, mas no fundo nunca saímos do lugar.

Mas se no filme de Ken Jacobs trilhamos o caminho de uma imagem única que se desdobra em várias, que sai do estático para se desdobrar em movimento ilusório, na animação Everything Will Be Ok, de Don Hertzfeldt, o que se vê é um processo inverso, num certo sentido. Aqui, as imagens não apenas já são dadas em sua condição de pluralidade – assim como o movimento (tanto no sentido prático, da sucessão de imagens, quanto dramatúrgico) –, como são excessivas até. Difícil é dar conta de todas essas imagens, pôr o cérebro para apreendê-las em simultâneo, dando conta do espetáculo estético que se tornou a vida moderna. Coisa que é extremamente cansativa, como atesta o processo de deterioração sofrido pelo personagem que acompanhamos.

Dessa forma, se Capitalismo: Escravidão cumpre uma primeira etapa de multiplicação das imagens, partindo de uma matriz única e decompondo-a em perspectivas, Everthing Will Be Ok, parte dessas imagens multiplicadas para articula-as na dimensão do plano, que deverá abrir espaço para a co-existência (e interação) das mesmas. Trata-se de um processo extremamente sofisticado de expansão do campo fílmico, que vai pouco a pouco sendo modelando por Don Hertzfeldt de forma a acompanhar os processos cerebrais do protagonista – até que, no clímax, em meio a uma profusão de imagens de difícil identificação, ocorra uma fusão e plano e cérebro tornem-se uma coisa só.

(Calac Neves)
Link para o trailer de Everything will be ok: http://www.youtube.com/watch?v=aWUJw7Dq5uo

sábado, 27 de outubro de 2007

Seams (Karim Aïnouz, 1993)

É sempre interessante o encontro com os primeiros trabalhos de um cineasta que se admira por suas obras mais recentes. Se por um lado corremos o risco de nos surpreender negativamente, como ocorreu em Rey muerto, curta-metragem de Lucrecia Martel (presente na mostra Foco Argentina) que decepciona qualquer entusiasta de seu cinema pela total dissonância em relação ao que há de mais interessante em seu atual trabalho, por outro há a chance de nos depararmos com grandes filmes, confirmando talentos inegáveis. É o caso de Seams, documentário dirigido por Karim Aïnouz, cuja carreira em longas-metragens distingue-o entre os mais interessantes realizadores do cinema brasileiro contemporâneo.

Equilibrando-se a todo o momento entre o registro tosco feito pelo que parece ser uma câmera caseira e a delicadeza das imagens registradas (os tons pastéis, a proximidade entre a câmera e seus personagens, a preocupação com a luz que atinge o quadro), Aïnouz inicia seu filme contando em inglês (embora esteja bem claro que ele não se dirige apenas a estrangeiros) diversas curiosidades sobre o Brasil, uma terra de machos, como diz o próprio através da narração de Fernando Alves Pinto. Após um breve prólogo, no qual o diretor traduz diretamente para o inglês palavras como “macho”, “viado” e “puta”, explicando ironicamente os seus significados, o filme vai ao encontro de suas personagens - as cinco tias-avós do diretor - apresentando-as com breves descrições de suas personalidades. A partir daí, as cinco senhoras, filmadas sempre em primeiro plano, contam histórias de suas vidas e discutem os mais variados assuntos, discursando sobre suas relações com o amor, a família, o casamento, o sexo.

Difícil desconstruir o amálgama de questões suscitadas por Seams, isolá-las uma a uma e organizá-las racionalmente para se chegar ao ponto de descobrir sobre o que, de fato, quer falar este belo filme de Karim Aïnouz. Isso porque a resposta não reside realmente no âmbito da organização, e sim na amálgama em si, nessa indiscernibilidade das questões. Seams é, ao mesmo tempo, um filme sobre o machismo e sobre a sua influência na vida de seus personagens (incluindo o próprio Aïnouz); sobre o olhar de um brasileiro que vive no exterior; sobre o amor e sobre o estar com o outro; passando pela discussão sobre a indistinção entre o real e a representação. Enfim, um filme sobre a vida, que, como ela, segue seu curso livremente, à revelia de qualquer impulso ordenatório.

Seams está na mostra Primeiros Quadros.
(Alice Furtado)

Quando criar dói


"Moradores do 304" tem uma série de elementos que merecem elogios.

Logo nas primeiras imagens que nos são apresentadas fica claro o cuidado do diretor com diversas questões plásticas, tais como a textura, a cor e as linhas que circundam a composição do dito apartamento e dos objetos de cena. De acordo com o depoimento do próprio diretor, Leonardo Cata Preta, após sua projeção no Cine Santa, dois anos foram necessários para que o material ficasse completo. Acho que é possível sentir esse esforço da parte dele e de sua equipe durante toda a duração do filme. Há um esmero também com outras questões técnicas da produção audiovisual, como a edição de som e a própria acelerada montagem das imagens.

Porém, o que me incomoda nesta obra são algumas “alegorias” (não sei se esse será o melhor termo para designá-las) pinçadas para demonstrar, representar, esse sofrimento do criador. Essa própria associação, que parece ser (re)utilizada ad eternum no que diz respeito à produção de curtas-metragens no Brasil (em especial universitários) entre processo de criação e momentos de introspecção, que dialoga claramente com patologias como a depressão, um tanto quanto me cansa. Criação é igual à depressão? Criação é igual à introspecção? Criar é ser circundado por aqueles demônios e ruídos que o diretor sugere nesse filme?

As imagens alegóricas pinçadas são das mais variadas e das mais literais. A torneira que pinga, emitindo aquele ruído seqüencial, lento e, com o tempo, insuportável; a gaiola vazia que balança; o porta-retrato quebrado; a tartaruga que encontra-se com o casco voltado para baixo. Em dado momento das imagens, até mesmo a pobre “Medusa” de Michelangelo da Caravaggio aparece por alguns frames de segundo...

Tudo bem que esta obra está dialogando com a tal “Elegia 1938” do Drummond, que está versando justamente sobre essa densa relação entre indivíduo e modernidade – um homem “engolido” pelas pressões da metrópole, melancólico, talvez confinado ao seu apartamento e às suas questões, assim como o filme propõe. O que eu sinto falta nesse diálogo do cinema com a poesia é um espaço para o silêncio. Os melhores momentos dessa obra audiovisual são aqueles permeados pelo vazio, sem necessidade de nenhuma das supracitadas “alegorias”.

Sinto falta daquela sensação de pequenino. Tomando as próprias palavras do poeta, “... mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras”. Talvez o escritor erguido por essas imagens e sons seja muito grande, sugerindo que as tensões advém de dentro do indivíduo para as ambiências externas. Obviamente que essa releitura audiovisual não é um problema conceitual, sendo muito bem-vinda. Mas, por outro lado, quando esta abordagem é adotada, todas as alegorias clichês vão surgindo uma a uma, levando o curta-metragem a perder boa parte da potência qualitativa que poderia ter, seja devido à opção pela referência ao grande Drummond, seja pelas já comentadas excelentes qualidades técnicas.
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"Moradores do 304" está na sessão Competição Nacional 3.
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(Raphael Fonseca)

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Começa o Curta Cinema 2007


O Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro - Curta Cinema 2007 traz de 26 de outubro a 4 de novembro mais de 300 curtas do Brasil e do mundo.

Além das Competições Nacional e Internacional, diversos programas especiais, retrospectivas e focos oferecem um ponto de vista privilegiado do cinema mundial.

A partir do Workshop de Crítica ministrado pela Revista Contracampo (www.contracampo.com.br), formou-se o grupo de seis críticos que cobrirão o Festival diariamente.