sábado, 27 de outubro de 2007

Quando criar dói


"Moradores do 304" tem uma série de elementos que merecem elogios.

Logo nas primeiras imagens que nos são apresentadas fica claro o cuidado do diretor com diversas questões plásticas, tais como a textura, a cor e as linhas que circundam a composição do dito apartamento e dos objetos de cena. De acordo com o depoimento do próprio diretor, Leonardo Cata Preta, após sua projeção no Cine Santa, dois anos foram necessários para que o material ficasse completo. Acho que é possível sentir esse esforço da parte dele e de sua equipe durante toda a duração do filme. Há um esmero também com outras questões técnicas da produção audiovisual, como a edição de som e a própria acelerada montagem das imagens.

Porém, o que me incomoda nesta obra são algumas “alegorias” (não sei se esse será o melhor termo para designá-las) pinçadas para demonstrar, representar, esse sofrimento do criador. Essa própria associação, que parece ser (re)utilizada ad eternum no que diz respeito à produção de curtas-metragens no Brasil (em especial universitários) entre processo de criação e momentos de introspecção, que dialoga claramente com patologias como a depressão, um tanto quanto me cansa. Criação é igual à depressão? Criação é igual à introspecção? Criar é ser circundado por aqueles demônios e ruídos que o diretor sugere nesse filme?

As imagens alegóricas pinçadas são das mais variadas e das mais literais. A torneira que pinga, emitindo aquele ruído seqüencial, lento e, com o tempo, insuportável; a gaiola vazia que balança; o porta-retrato quebrado; a tartaruga que encontra-se com o casco voltado para baixo. Em dado momento das imagens, até mesmo a pobre “Medusa” de Michelangelo da Caravaggio aparece por alguns frames de segundo...

Tudo bem que esta obra está dialogando com a tal “Elegia 1938” do Drummond, que está versando justamente sobre essa densa relação entre indivíduo e modernidade – um homem “engolido” pelas pressões da metrópole, melancólico, talvez confinado ao seu apartamento e às suas questões, assim como o filme propõe. O que eu sinto falta nesse diálogo do cinema com a poesia é um espaço para o silêncio. Os melhores momentos dessa obra audiovisual são aqueles permeados pelo vazio, sem necessidade de nenhuma das supracitadas “alegorias”.

Sinto falta daquela sensação de pequenino. Tomando as próprias palavras do poeta, “... mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras”. Talvez o escritor erguido por essas imagens e sons seja muito grande, sugerindo que as tensões advém de dentro do indivíduo para as ambiências externas. Obviamente que essa releitura audiovisual não é um problema conceitual, sendo muito bem-vinda. Mas, por outro lado, quando esta abordagem é adotada, todas as alegorias clichês vão surgindo uma a uma, levando o curta-metragem a perder boa parte da potência qualitativa que poderia ter, seja devido à opção pela referência ao grande Drummond, seja pelas já comentadas excelentes qualidades técnicas.
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"Moradores do 304" está na sessão Competição Nacional 3.
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(Raphael Fonseca)

5 comentários:

  1. "Criação é igual à depressão?"
    _ O filme não atesta que criação é igual a depressão. No caso de Moradores do 304 o que se apresenta é um indivíduo atormentado, e os tormentos o acompanham em sua vida doméstica, nas coisas triviais como beber um copo d'água e fumar um cigarro, ou durante o seu trabalho como escritor. Pessoas atormentadas não são necessáriamente artistas, o poema do Drummond usa o tempo verbal na segunda pessoa do indicativo, ele não restringe aquela inquietação existencial à uma experiência pessoal isolada, muito pelo contrário. No caso do filme o atormentado é um escritor, poderia ser o carteiro da sua rua...
    "Criar é ser circundado por aqueles demônios e ruídos que o diretor sugere nesse filme?"
    A resposta é não!
    A criação é algo maior e mais complexo do que simples diário transcodificado de angústias e problemas pessoais. No entanto criar pode suscitar vários estados emocionais, registra-se euforia, alegria, excitação mas também decepção, desagrado, angústia e até mesmo desespero. Em todo o caso o filme não trata sobre um estado de espírito que se traduz em obra literária. Seja lá o que ele escreve, o fato é que não consegue se desvencilhar destes opressores quiméricos, se isso é materializado no que ele escreve, até onde eu sei o filme definitivamente não mostra.
    O que se discute aqui não é como nem o quê o escritor está produzindo, o que o filme propõe mostrar é um estado psicológico de uma pessoa que produz literatura, tanto é que os textos que aparecem escritos nas paredes não querem dizer absolutamente nada, não é nem mesmo uma escrita legível, é apenas grafismo.
    O filme não versa sobre criação ou processos de criação somente, é sobre como a "Grande Máquina" te repõe pequenino, no seu pequeno universo doméstico, que serve como refúgio mas ao mesmo tempo oprime; A solução é que talvez "dormindo os problemas te dispensam de morrer"...
    Talvez você não tenha visto o filme todo, ou não se lembre da última cena, mas a idéia central de todo o filme está alí.

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  2. Leonardo,

    nem sei se você vai ler isso, mas de qualquer forma escreverei.

    entendo o que você comentou sobre a crítica e fico deveras feliz por teres lido.

    de qualquer forma, porém, minhas opiniões seguem. as perguntas que lancei eram justamente pra ficar como questões mesmo. acho que elas partem do teu filme para uma produção universitária mais ampla no Brasil. julgo que vários filmes universitários são bem parecidos com o teu, no que diz respeito ao tratamento do que seria a "criação". daí as questões.

    acho que o que mais me incomoda é justamente a forma como você mostra o "estado psicológico de uma pessoa que produz literatura". costuma achar que os curtas que pretendem mostrar isso soam muito parecidos.

    além disso, por mais que você diga que tenha querido ressaltar esse "pequenino", eu ainda acho esse teu personagem principal enorme (poeticamente). por outro lado eu acho que consigo ver (e já via anteriormente) esse ambiente doméstico que é tanto lar quanto prisão.

    por fim, eu vi o curta todo sim e lembro bem do último plano. e mantenho as impressões.

    de qualquer forma, viva à multiplicidade de leituras das obras e opiniões!

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  3. Obrigado Raphael.
    Eu acho válida qualquer opinião e manifestação a respeito da obra. Filmes existem para serem vistos, revistos e comentados, sinal que há relevância no que se apresenta. Digo que fiquei feliz pelo seu incômodo, mais que pelos elogios referentes ao bom acabamento técnico pois disso não há o que discutir.
    Feliz também pois na sessão haviam outros filmes e você postou crítica apenas do meu, sinal que Moradores do 304 era dissonante em suas características em relação aos outros, não sei se para melhor ou pior, estou certo?
    Bom, você poderia me relacionar outros filmes que "no que diz respeito ao tratamento do que seria a "criação"" são parecidos com o meu?
    Volto a ressaltar que o filme não é centrado no ato da criação artística, carcterística que é inrente ao personagem pois de fato ele é um escritor, assim como Drummond o era. Antes o filme versa sobre reclusão, solidão e tormento. Como eu disse poderia ser o carteiro da sua rua ou o gerente do seu banco, mas optei pelo escritor...

    Gostaria de agradecer o merecimento de sua atenção entre os filmes exibidos e pela crítica no seu Blog.

    Leonardo Cata Preta

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  4. Leonardo,

    bom ver que você está acompanhando a discussão.

    antes da lista, só queria tocar nesse ponto da criação. por mais que você diga que teu curta não é especificamente sobre criação, como você criou um personagem principal que o é, não consigo dissociar as coisas, entende?

    em verdade, venho achando que o que me incomoda no teu filme não é essa possível leitura que relaciona a criação à solidão, à dor e etc. acho que minhas questões são todas com essas "alegorias" que você cria para demonstrar algumas sensações.

    partindo pra lista, é legal dizer também que alguns desses curtas eu gosto bastante. fiz essa listinha a partir da minha experiência como público e também equipe do Festival Brasileiro de Cinema Universitário. são todos filmes curtos e universitários, daí não sei se você conhecerá algum.

    "Ausência", Aleques Eiterer (acho bem bacana)
    "Vênus partida", Luiz Prado
    "Natureza Morta", Juana Amorim
    "Transtorno", Fernanda Teixeira
    "Matéria do mundo", Alexandre Toscano.

    existem outros curtas que não tocam no assunto da criação (e talvez te interesassem mais), como da Paula Canella, "A mente", que é bacana também ou da Ana Priscila Freire, "Desordem".

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  5. Obrigado Raphael. O que discordei desde o início foram as proposições partindo deste "Quando criar dói".
    Posto que na verdade o que te incomoda são as tais alegorias, então não há o que discutir. Uma questão pessoal sua.
    Sem mais.

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