Everything Will Be Ok, de Don Hertzfeldt
Fica claro quando assistimos ao Programa 1 da Competição Internacional a intenção de uma compilação temática na medida em que praticamente todos os filmes apresentados procuram discutir, de forma mais ou menos declarada, problemas relacionados ao mundo em sua dimensão social. A exceção – que confirma a regra – fica por conta justamente do primeiro filme, Exame, do romeno Paul Negoescu, uma breve digressão juvenil (quase pueril) sobre o ceticismo que, por fixar-se na esfera de um conflito privado, funciona como uma espécie de prólogo para o resto da sessão, composta ainda por outros cinco filmes de lugares variados do mundo.
Mas se o alinhamento temático aqui parece regra, há, contudo, dois filmes em particular na sessão que se sobressaem por uma preocupação estética em comum: a procura por uma nova forma de se relacionar com a imagem dentro do paradigma de formal do cinema. No fundo, são duas tentativas de multiplicação da imagem, que passa a circular de forma livre pelos veios da linguagem cinematográfica. Não por acaso são exatamente os dois filmes que não têm o real propriamente dito como matriz direta, se valendo de outros suportes como a gravura e o desenho.
Em Capitalismo: Escravidão, Ken Jacobs parte de uma imagem estática para, com breves mudanças de enquadramento e perspectiva, dar a impressão de movimento. Na gravura, negros escravos colhem algodão em uma fazenda, observados por um capataz. Assim, imagens diferentes de um mesmo trecho da gravura se sobrepõem por meio de flashes, dando a impressão de um movimento intermitente – como que por luzes estroboscópicas. Um movimento que obviamente jamais nos levará a lugar algum, pois jamais abandonamos a superfície da figura que serve de ilustração. Como um ciclo vicioso ilusório, que em última análise serve como metáfora para a expansão do capitalismo ao longo dos tempos: parecemos estar em movimento, mas no fundo nunca saímos do lugar.
Mas se no filme de Ken Jacobs trilhamos o caminho de uma imagem única que se desdobra em várias, que sai do estático para se desdobrar em movimento ilusório, na animação Everything Will Be Ok, de Don Hertzfeldt, o que se vê é um processo inverso, num certo sentido. Aqui, as imagens não apenas já são dadas em sua condição de pluralidade – assim como o movimento (tanto no sentido prático, da sucessão de imagens, quanto dramatúrgico) –, como são excessivas até. Difícil é dar conta de todas essas imagens, pôr o cérebro para apreendê-las em simultâneo, dando conta do espetáculo estético que se tornou a vida moderna. Coisa que é extremamente cansativa, como atesta o processo de deterioração sofrido pelo personagem que acompanhamos.
Dessa forma, se Capitalismo: Escravidão cumpre uma primeira etapa de multiplicação das imagens, partindo de uma matriz única e decompondo-a em perspectivas, Everthing Will Be Ok, parte dessas imagens multiplicadas para articula-as na dimensão do plano, que deverá abrir espaço para a co-existência (e interação) das mesmas. Trata-se de um processo extremamente sofisticado de expansão do campo fílmico, que vai pouco a pouco sendo modelando por Don Hertzfeldt de forma a acompanhar os processos cerebrais do protagonista – até que, no clímax, em meio a uma profusão de imagens de difícil identificação, ocorra uma fusão e plano e cérebro tornem-se uma coisa só.
(Calac Neves)
Link para o trailer de Everything will be ok: http://www.youtube.com/watch?v=aWUJw7Dq5uo
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