sábado, 8 de novembro de 2008

Uma cidade invisível chamada "Dreznica"

Competitiva Nacional 6
A Dreznica de Anna Azevedo não fica na Eslovênia. A partir de relatos dos que não podem ver, a diretora desterritorializa a pequena cidade e a reconstrói na tela como um não-lugar onde imagens significam sensações. A pergunta inicial do documentário, de como os cegos sonham, inspira os entrevistados a divagarem, numa prosa poética, sobre como cada um deles concebe o mundo.

Em vez do breu total, a cegueira é comparada ao azul liberdade do céu. Para os que guardam lembranças de um dia terem visto, a memória pode significar permanência ou vontade de esquecimento. Enquanto um entrevistado se recorda do próprio pai, hoje bem mais velho, como tendo eternos 31 anos, a menina que aos seis parou de enxergar repentinamente não sabe como isso lhe aconteceu.

A relação entre o visual e os sonhos tampouco pode ser expressa de maneira linear. Em alguns casos, os sonhos ficam mais abstratos; em outros, ocorre o inverso. Como se a ponte afetiva entre imagem e inconsciente fosse pouco a pouco deteriorando-se, os sonhos vão se tornando mais sintéticos.


Essas imagens pensamento, imagens oníricas, imagens memória são verdadeiros desenhos falados, cuja estruturação imagética vai se concretizando num plano íntimo à medida que ouvimos essas histórias de vida e as traduzimos em sensações. Ocorre um extravasamento do olhar para além de formatos, cores, profundidades. O pictórico se vê ultrapassado pela necessidade de re-vermos o conceito do que é imagem.

Do mesmo modo em que o som funciona para os cegos como o contato mais imediato com as pessoas, só temos acesso aos personagens pela voz. A opção de aproveitar apenas o áudio da entrevista pode também ser entendida como o recurso estilístico enfático do colocar-se no lugar do outro, no entanto, em Dreznica esta escolha é mais elaborada do que isso.

A diretora deixa-se guiar. Na subversão que o cinema faz da realidade, seus personagens não precisam de cães ou bengalas. Em meio ao desconhecido, ao novo, em meio à fluidez, eles estão em casa. Podem, portanto, assumir a função de guias. A exemplo do que eles estão comunicando, Anna Azevedo livra-se, ela própria, das amarras formais. Se desfaz do tradicional modelo de documentário de entrevista e retira dele apenas o que contém de mais sublime: a fala. É a imersão do curta no sensorial. Imersão essa aprofundada pelas imagens que acompanham os depoimentos.

Não necessariamente as cenas casam com o que está sendo dito, embora haja momentos (lindos) de encontro. Assistimos a trechos entrecortados de filmes de viagem, de festas infantis e variadas situações domésticas. Em outro apanhado visual, céu, árvores, quedas d’água, um barco em pleno nevoeiro. Fugindo do excesso óbvio de foco e desfoco, as imagens poetizam exatamente por não serem pretensiosas. Não querem incorporar a experiência da cegueira, apenas tocar, tatear seus contornos.

Pouco importa se as imagens exibidas não foram de fato vivenciadas pelos personagens do curta. Elas não são alheias a eles. Nem a nós. Ao reunir arquivos caseiros filmados em Super 8 por amigos, familiares e todo tipo de gente, Anna Azevedo universaliza essas memórias e insere dentro de nós a emoção imaginada desta cidade invisível chamada Dreznica.

(Talita Marçal)

Ocidente - Leonardo Sette


Ocidente é polissêmico, porque extrair uma assertiva única é justamente limitar as possibilidades de interpretação que o filme oferece. Leonardo Sette é de tal perspicácia ao filmar dois casais em viagem de trem, que por momentos a dúvida se aquilo é encenado ou não aparece. O plano inicial engloba um movimento de corpos marcados pelo tempo. O abajur parece dividir não só o quadro mas o próprio casal idoso. A distância entre ambos perfaz os gestos e as expressões. A viagem segue, misturam-se imagens refletidas na janela, o caminho percorrido invade a figura do casal em uma fusão perfeita de imagens, que engana parecendo ser fruto da montagem. Um corte marcante com a tela preta marca uma segunda etapa do filme. Agora vemos a sombra de um casal jovem, abraçados, conversando em meio a risos e beijos apaixonados. O movimento dos corpos e o seu contraste com o primeiro casal é fantástico. Essa oposição entre o que compreende os dois planos gera problematização e as possíveis leituras do filme. O diretor afirma ter buscado uma possibilidade de perceber as relações cotidianas atualmente e sua relação com o tempo, mas ressalta que as variadas experiências do espectador fazem o filme mais rico. Ocidente é apenas um olhar aparentemente descompromissado, são sete minutos de observação em que ao menos um tema se evidencia de pronto, a ação irrefreável do tempo e a ressignificação das relações humanas.

Eu e crocodilos – Marcela Arantes

O moinho na beira de um rio

A luz barrenta e os sons fluidos ambientam eficazmente o cenário do rio e nos dão a percepção onírica. Sonho que, embora fictício por definição, se nos destina como a verdade da diretora, fundador de um sujeito e de um objeto que vêm até nós. Os jacarés transbordam dos pesadelos para o mundo como moinho, e é missão da protagonista fazer do medo, coragem, da insegurança, desbunde. Pois é de onde mora o perigo que nasce a salvação, basta uma atitude.
A ancoragem factual do sonho se repete nos diálogos. Pelo improviso, claro na reincidência de gírias (pô, meu!), o realismo nos aproxima de questões e favorece atuações. Atores de si mesmos, os personagens nos tocam por sua naturalidade e nos transportam para a adolescência. Brigas com irmãos, expectativas amorosas, amizade, fofocas e flertes pueris. O que nos havia escapado com o passar do tempo nos envolve pela tela e prova não apenas que recordar é viver, mas que cinema é viver.

Ciro Oiticica

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Encanto - Julia de Simone

Eu passarinho

Cinema de observação, Encanto opta pela melhor forma de se relacionar com a terceira-idade. A câmera procura uma aproximação por duas vias opostas. A câmera imóvel e aberta respeita a polissemia da imagem alternando-se com planos-detalhe que captam a minúcia dos gestos e o vazio dos olhares. Os diálogos são substituídos pelo canto dos pássaros e pelo ruído local. As palavras e os movimentos bruscos não vêm manchar a meditação que a obra oferece. A observação como aprendizagem, eis a postura do filme.
O distanciamento etário e filosófico se justifica. O mundo em que entra a obra é consideravelmente diverso do habitual. O olhar da jovem diretora Julia de Simone contrasta com seu objeto, os idosos. O frenesi da contemporaneidade não tem carteirinha do clube, a melodia dos passarinhos tudo neutraliza e subverte. A vida das pessoas é um tranqüilo passar do tempo, marcado pela companhia vivaz dos pássaros.
Encanto é um relato sobre o resgate do sublime nos elementos simples da vida. Mais que um trabalho sobre o olhar ou o ouvir, o curta aborda questões existenciais, afloradas no estágio da vida em foco. A dedicação derramada em tantas horas de meditação não é meramente esclerose ou terapia ocupacional. O que buscam os apreciadores no canto onírico dos pássaros é o mistério . Contrariamente à busca ansiosa dos românticos, a obsessão é substituída pela fé como espera serena do devir, mas sem sentido eclesiástico. “Quem não espera, não encontrará o inesperado, pois ele é inexplorável e inacessível”, dizia um pré-socrático. O ritual do canto é preparação para o imponderável da morte, entrega ao desconhecido e à beleza do simples.
A linguagem vista como limitação transparece nos planos abertos e no canto dos pássaros, como arte ligada ao inefável, ao indizível, que buscam trazer da fonte o belo inalterado. A obra é uma reunião de pessoas que desistiram de buscar a verdade nas palavras ou nas opiniões, perceberam a corrupção dos sentidos, descobriram o vazio por trás do simulacro.
“Todos esses que aí estão atravancando meu caminho, eles passarão. Eu passarinho!”. Os versos brancos, puros de Quintana sintetizam esse estado de espírito. Opondo-se à grandiloqüência do “passarão”, só o passageiro é o que fica: o “passarinho”.
No paradoxo em que se encontram os idosos, já que oscilam entre muito tempo livre e pouco tempo restante, há de se conjeturar que a busca da beleza original leva a vida inteira; a morte não seria nada mais que seu encontro. Assim como paramos de procurar após encontrar, deixamos de viver quando alcançamos o divino. O projeto desses sábios é dar seguimento àquilo que a vida moderna interrompeu: a espera pela espera.
Diz-se que o autor é parte da obra. Encanto o prova. A beleza e simplicidade são um pedaço de Júlia. Sua presença no debate após a sessão permitiu identificar em seu sorriso o mesmo encanto da película, mas fora do alcance da crítica. Ainda Quintana faz a mediação: “se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las. Que tristes os caminho se não fora a mágica presença das estrelas!”

Ciro Oiticica

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Depois das Nove

Um filme sutil. “Depois das Nove” mostra como algumas grandes mudanças instalam-se sorrateiras dentro de nós. Nos chegam pouco a pouco, tão imperceptíveis, que conseguem nos convencer de que tudo continua igual. E não mais que de repente, atinamos que ela estava ali há algum tempo, a influenciar-nos com sua mania de olhar diferente para o mundo.

Rafael mora em Copacabana com a avó. Cada um vive absorto em seu próprio espaço, onde os pormenores do cotidiano, como um simples escutar música, estabelecem as fronteiras: ela ouve uma cantora francesa num velho toca fitas; ele baixa arquivos mp3 na internet.


Os dois conversam pouco, os diálogos são rápidas trocas de impressões ou demonstrações de afeto, como a clássica preocupação da avó chamando o neto para comer. Embora sejam independentes um do outro, os personagens não apenas dividem o apartamento, mas convivem carinhosamente, numa harmonia silenciosa. Um dos grandes méritos do curta é brincar com esta dicotomia distância e aproximação, sem abandonar a delicadeza.

O prelúdio de que algo está para se transformar é anunciado pelo alarme de um relógio, que toca, impreterivelmente, todos os dias às nove horas. Rafael é o primeiro a reparar no barulho e a sentir sua falta quando ele é interrompido. Aliás, é Rafael que passará pela tal mudança sorrateira. Na tela, esta guinada do personagem manifesta-se com suavidade, sendo melhor traduzida pela insinuação do que acontece internamente com ele do que por uma ação enfática.

“Depois das Nove” integra o programa Novos Quadros, definido pelo Curta Cinema como aquele cujos filmes queremos por algum motivo acompanhar, seja pelo conjunto da obra, pelo potencial do diretor. E se há um curta-metragista que queremos acompanhar com vontade é Allan Ribeiro. Entre as suas realizações estão os premiados “Boca a Boca”, “Papo de Botequim”, “Senhoras” e “O Brilho dos Meus Olhos.” Para os fãs deste último curta, “Depois das Nove” tem a participação especial do ator Marcelo Dias.

A reapresentação será 7 de novembro, sexta-feira, às 14h na Caixa Cultural 2


(Talita Marçal)

Dedilhado - Alina Rojas

Dedilhado (Strumming no Original) é mais que uma panorâmica em 360° por dentro de uma floresta alemã. O movimento dura onze minutos e a floresta aliada a excelente música é o grande trunfo do filme. O corpo que cai no primeiro minuto e que ali continua ao final pode soar como a representação da magnanimidade daquelas árvores e da natureza em si. Imensas, elas dançam sob ação do vento em meio a uma música que parece sob medida para o seu balé. Os longos minutos confundem, a floresta acaba? A impressão é de que o infinito ali se encerra. A fotografia é marcante e quase sombria, consegue passar sensações de frio e o vento parece tomar cor. O contraste do ritmo sonoro com o giro da câmera, associado ao movimento da floresta, incomoda. No debate pós-sessão a diretora argumenta que depois de algum tempo o espectador passa a pensar em outras coisas que não no filme, numa viagem introspectiva. Algum espectador falou em sentimento de angústia, um outro em uma reflexão sobre a condição humana. Falo aqui em uma variedade imensa de experimentações visuais. Tempestuoso talvez fosse um bom adjetivo para descrever tanto potencial natural traduzido em imagem.

O fim do mundo em “M.O. – 105 Maria”

Foco Japão 3

Depois do fim do mundo, a eternidade são hologramas exibidos para ninguém no deserto. A andróide Maria acorda e assiste a uma transmissão high tech projetada em pleno ar, ininterruptamente, por quase 28 anos. Uma consulta à sua memória digital confirma o que o horizonte de areia ao redor anunciava: acabou a vida na Terra, desde 2104.

Ao acionar a lembrança dos momentos anteriores à explosão atômica, Maria vê a menina de quem cuidava regando uma planta e explicando-lhe que dali brotaria a vida. A robô percebe que está no mesmo velho jardim e encontra o regador, os restos do tronco e uma torneira que pinga gotículas demoradas de água. Ela passa a dedicar os anos-séculos à tarefa de molhar aquele pedaço de terra.

O passar do tempo e a condição de abandono do último ser do planeta são acompanhados por planos abertos, belíssimos, que contrastam a pequeneza de Maria com a imensidão desértica. O complemento sonoro vem pelo ruído do vento, às vezes, ensurdecedor. Essa narrativa complacente, de quem espera com paciência que algo aconteça, é intercalada pelas recordações da ciborgue. Enquanto o passado feliz é colorido, a cor desbotada marca o presente escatológico, numa pintura da ausência. Outro recurso imagético usado - este bem menos encantador por ser conhecido das ficções científicas à lá “RoboCop” - é a visão subjetiva computadorizada para simular o modo como Maria apreende e processa a realidade que a cerca.

À primeira vista, uma super máquina representar a esperança de toda existência pode até evocar alguma euforia frente aos avanços da tecnologia. No entanto, a sensibilidade do diretor Secky Shang redireciona por completo essa impressão. Shang renova a crença no humano. Esse é o seu tema. O mesmo homem que com seus inventos promove a guerra nuclear é capaz de criar a andróide, seu artifício de recomeço.

De todas as suas criações, ela é a única feita à sua imagem e semelhança, a ponto de aprender a esboçar emoções, numa humanização crescente. Sobretudo, não se trata de qualquer andróide. Mas de Maria. Aquela cujo bendito fruto espera-se que seja a salvação. A inquietude de “M.O. – 105 Maria” não vem do efeito fácil. Em vez do pânico apelativo de apocalipses hollywoodianos, o que assombra é a lucidez que, embora otimista, é principalmente preocupada com a possibilidade de que a destruição, sim, se realize.
A reexibição será dia 7, sexta-feira, às 19h na Caixa Cultural 1.

(Talita Marçal)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

[Jonas Mekas - O Poeta da Second Avenue]

A obra de Jonas Mekas se enquadra no delicado nicho do cinema experimental e artístico. Conhecido por seus “filmes-diário”, Mekas registrou a vida de muitos famosos como Andy Warhol e Timothy Leary, além de inúmeras manifestações de vanguarda, militância e misticismo.

CASSIS acompanhamos uma pequena cidade portuária do Sul da França sendo filmada ininterruptamente, quadro-a-quadro, do nascer ao pôr do sol. Vislumbram-se mudanças sutis de luz e sombras ao longo dos dias, enquanto o tempo aqui é desligado de sua funcionalidade aparente.


XÍCARA / PIRES / DOIS DANÇARINOS / RÁDIO dois performers ensaiam um exótico “balé” onde o comportamento do casal médio das cidades grandes é visto por um olhar esquizofrênico. Ao longo de 23 minutos este ensaio Pop Art desloca a aparente normalidade da vida em casal e a paciência de muito espectadores com a interminável e aparentemente inútil performance. Mas é de se apontar o mérito de um filme que para além dos corpos em trajes sumários colidindo e do olhar afetado de seus personagens está uma performance que retrabalha signos do cotidiano e da cultura pop deslocando-os de seu uso tradicional fazendo um doentio diagnóstico da modernidade.


O RELATÓRIO DE MILLBROOK num fim de semana em 1965, Mekas visitou a propriedade rural onde viveu Timothy Leary com mais 33 adultos e 10 crianças. Toda o curta-metragem é preenchido por imagens belas e fragmentadas, que salientam a impressão de diário de memórias. Guiando o passeio a Millbrook está o interrogatório em off de um dos antigos moradores da propriedade por autoridades federais. São minuciosamente descritas as atividades e rotina do grupo, com o objetivo diminuir o desconforto do auto-escalão norte-americano com as atividades subversivas de uma comunidade que cultivava o ócio criativo e a adoração de religiões orientais. Junto a isso, a justaposição onírica das imagens deixa claro que a lembranças mostradas já se encontram distante no tempo, junto com uma alegria que se pretendia eterna.


CANÇÕES DE RUA canções de Rua é uma performance na França, em 1966, de uma parte de “Mysteries and Smaller Pieces”, do grupo Living Theater. Com assistência de Noel Burch, Mekas documenta a encenação catártica do grupo de teatro. Repetindo insistentemente os mantras de militância e pacifismo de seu “guru” em inúmeras línguas, o grupo cria uma verdadeira celebração religiosa e mística que se eleva em uníssono até o extasiante clímax.


HARE KRISHNA numa passeata pelas ruas de Nova Iorque num domingo à tarde, vê-se de perto a celebração da Era de Aquários, e o entusiasmo coletivo manifesto em cantos e danças, enquanto observamos pelo olhar caleidoscópico da lente de Mekas.


CENAS DA VIDA DE ANDY WARHOL uma compilação dos diários filmados por Meka de Andy Warhol, do período 1965 a 1982. Cenas da vida de Andy Warhol, trazem a curiosa normalidade da vida de Andy Warhol ao lado das sobrinhos da irmã e dos amigos famosos Lou Reed, Mick Jagger, John Lennon e Yoko Ono, Allen Ginsberg, Nico e Caroline Kennedy, com o acompanhamento da música do Velvet Underground em alguns de seus momentos mais caóticos. São captadas belas imagens do convívio familiar que tem como valor maior o registro documental de uma das figuras mais importante do século XX.

[A Demolição] Aleques Eiterer

Gilmar é um craque de bola que sai do interior de Minas para São Paulo a procura do estrelato num grande time de futebol. Mas, como todos que arriscam deixar o passado pra trás, pouco sobra quando seus sonhos são desfeitos.
A insistente idéia de deixar para trás, casa, família e cidade natal em busca de melhores oportunidades se torna desastrosa quando uma inesperada lesão o tira de campo. Deixando como alternativa apenas uma vida difícil atrás dos balcões.
A partir do momento que descobre que a antiga casa onde vivia será demolida, Gilmar se desespera e relembra fatos esquecidos na memória desde a infância. Quando numa pelada no quintal, Tiquinho, um menino da vizinhança é forçado pelo outros amigos a ir atrás da bola que cai no porão da velha casa e nunca mais volta. O medo e a culpa fazem Gilmar se desesperar assombrado pelos atos da infância.
O problema do filme se dá justamente na virada da trama, que em momento algum aproxima as duas histórias antes do choque ao final. O que poderia ser uma agradável surpresa num gênero que poucas vezes sai do lugar comum se torna um recurso despropositado. Que alterna uma história de sonhos da juventude frustrados na maturidade, com estranhas assombrações perdidas no passado.

Alvorada Vermelha - Eduard Grau, Edward Edwards

Barentsburg é uma cidade que se condensa em si mesma, em meio a neve de uma ilha norueguesa no círculo ártico ela sobrevive. Subsiste ao inóspito. Em um primeiro momento os diretores apresentam a cidade, seus espaços de convivência e seus limites cobertos de gelo. A seguir, uma outra Barentsburg é apresentada, a dos que ali habitam os resquícios do que outrora fora uma mina de carvão e suas dependências. A segunda metade do filme é bem definida, sobretudo pelo olhar dos habitantes em direção a câmera. Inicia-se a descoberta do que preenche aquele vazio branco, cada indivíduo escolhido apresenta o seu espaço de vivência e afetividade. O plano de uma menina com um gato nos braços é seguido por outro em que um trabalhador segura um porco da mesma forma. Essa relação entre os planos sugere que ali é que se dão as relações afetivas, no dia-a-dia, nos locais de trabalho, nas moradias. Em um local tão difícil a vida cresce dentro dos espaços construídos, na música cantada pelo sanfoneiro, na decoração de um rio com muitas plantas em um mural na parede de uma casa, nas relações com os animais. Filmado em apenas cinco dias, Alvorada Vermelha é um documentário sensível a essas diversas formas de relações sociais e ocupação dos espaços, construído de forma leve e despretensiosa.

Alvorada Vermelha faz parte da Competitiva Internacional 4, exibida hoje na Caixa Cultural 1 as 15hs.

Café com leite - Daniel Ribeiro

Entre o amargo e o doce

A obra de Daniel Ribeiro é um elogio ao contato humano. Ele narra a história de dois irmãos, a criança Lucas e o jovem Danilo, e do namorado do mais velho, Marcos, quando todos se vêem forçados a mudar de planos devido à morte dos pais dos irmãos. Os namorados acabam tendo que abdicar de uma viagem e da vida a dois em um novo apartamento para que Danilo possa cuidar do irmão. Dessa adaptação, surgem novos relacionamentos entres os três personagens, mostrando que o melhor é aceitar o correr da vida.
O título é um excelente ponto de partida para análise. Expressão bem brasileira (tanto que a tradução para o inglês Me, you and him é digna de “Sessão da tarde”), café-com-leite designa algo ou alguém cuja inexperiência justifica, num jogo, não ser alcançado pelo rigor das regras. Diego fala para seu irmão mais novo que ele não é mais café-com-leite após ele passar um nível do videogame, indicando que ele está crescendo.
Mais do que essa simples referência, o filme procura mostrar que todos podemos ser café-com-leite em relação às mudanças repentinas e à imprevisibilidade da vida. Temos o privilégio de não poder controlar nosso curso, de não sermos levados a sério, de não fazer da vida um livro de regras.
O significado de Café com leite vai além, sempre tipicamente brasileiro. É da expressiva mistura do título que se constrói a narrativa. Misturas não apenas entre os personagens, mas entre essas duas substâncias, o café e o leite, que permeiam a subjetividade de qualquer pessoa: a pureza do leite como memória doce de uma infância passada, quando um leve indício de choro bastava para receber o carinho materno, e o café como o amargo do envelhecer, a obrigação de ficar desperto e independente. Ao pedir que Danilo prepare seu leite, Lucas busca o afeto, a atenção. Quando Lucas pergunta ao seu irmão o porquê de chorar, a resposta é que “não é nada, é coisa de gente velha”; é a dor que escorre por sua bochecha, são lágrimas de café. A obra de Daniel Ribeiro demonstra de que forma a mistura permite neutralizar tanto o sofrimento quanto a inexperiência levando à maturidade pela dissolução da dor no contato humano.
Entre a infantilidade e o paternalismo, os personagens se alternam, superando tanto o medo de crescer e de aceitar as mudanças, quanto o de voltar a ser criança e pedir o carinho que precisam. A inversão das situações, quando Diego procura o irmão mais novo pra dormir em sua cama e este o consola, permitindo que ele durma de tênis, é uma amostrado poder lenitivo do carinho e da companhia. Pela mudança, os sentimentos se equilibram, encontram um ponto justo. Ao transformar, repousam, diria Heráclito. As próprias questões abordadas pelos personagens, das existenciais às habituais, da saudade ao videogame, acompanham a lógica (ou o caos) do fluxo.
Café com leite é a história de três vidas reunidas em torno de uma frase. “Quando as coisas mudam, se acostumar é difícil, mas, depois de um tempo, vai”. É o tempo de as coisas se ajustarem, encontrarem a mescla certa. O tempo em que o derrame de café ainda invade a alvura do leite, que a vida perturba nossa inocência de querer levá-la.
A abordagem do filme quanto à questão homossexual é brilhante, sem exagero. Um ditado afirma que a melhor forma de demolir um preconceito é pelo desprezo. Os temas são tratados com naturalidade. A espetacularização que se fez em torno de O segredo de Brokeback Mountain leva a pensar se o filme teria esse sucesso todo não fosse a temática gay. Da mesma forma, as novelas ao mostrar casais totalmente púdicos, sem espontaneidade, incomodam profundamente, parecem reforçar a intolerância. Café com leite em nenhum momento se aproveita da condição do casal ou o hiperboliza. O anseio hiper-real de defesa, a encenação afetada ou espetacular acaba por justificar e fortalecer o preconceito. Os opostos se legitimam. Eliminando um, é provável que o outro desapareça. Por isso interrompo minha defesa: não irei mais trair o ditado.
Foi um deleite assistir a um filme tão doce, doçura que a lembrança do batente, às seis da manhã do dia seguinte (regado com muito café pra ficar esperto), reenquadrou na realidade. Mas nem isso desanima, já que a felicidade nada mais é que a complacência da solidão (e vice-versa).

Ciro Oiticica

Cinema Documentário (sessão NAC3)

A sessão Nacional 3 é um prato cheio para os amantes do cinema documentário e esse post vai falar um pouco sobre eles, os documentários.

Cocais, a cidade reinventada é ótimo material para uma aula de teoria do documentário. Se aprendemos bem a lição de João Moreira Salles e seu 'Santiago' (2007), veremos em Cocais uma imagem forçada e obtida a qualquer custo, exemplo de tudo aquilo que não se deve fazer. O próprio João Salles tem uma boa definição sobre a diferença entre documentário e ficção, que passa justamente pela questão da ética, uma vez que no documentário tratam-se de pessoas 'reais' cujas vidas existem antes do filme e vão continuar depois dele.

O filme é feito em uma cidade-manicômio e a questão se faz de forma muito clara: vale filmar loucos? Eu acho que não. Isso faz muito sentido lá para os filmes do Wiseman com sua obsessão pelas idéias de cidadania e denúncia. Particularmente, não tenho interesse por esse tipo de filme, interessam-me as pessoas e não as instituições. Fico me perguntando o que aquelas pessoas ganharam com aquilo. A reciprocidade é nula e Cocais não fala de pessoas, mas as utiliza sem que elas tenham real consciência do que está acontecendo ou da proporção do ato da filmagem. A cartela final diz tratar-se de 'uma cidade que se reinventou através de um filme ou um filme que foi inventado por uma cidade'. Não vejo nenhuma das duas coisas. Trata-se, sim, de um filme arrancado de uma cidade com toda a força e desonestidade possíveis.

Enquadramentos de olhos vesgos, pessoas prestando-se ao ridículo, dentes faltando - a idéia de documentário apoiado na "lógica do pior". Consuelo Lins, autora de 'O Documentário de Eduardo Coutinho' nos ensina um pouco sobre o papel da equipe e da montagem em proteger os entrevistados de um documentário: "Houve momentos nos quais foi preciso defender o entrevistado dele mesmo, em que a lógica do pior – central nos programas sensacionalistas e populares – impôs-se, e o que se ouviu foi a pior história, a maior desgraça, a grande humilhação. Porque o desejo dos moradores, em muitos casos, é o de escapar do isolamento, ganhar visibilidade a qualquer preço. O confronto com esse tipo de exibicionismo, indissociável do voyeurismo de espectador, é incontornável (...)" [SOBRE 'EDIFÍCIO MASTER' (2002)].

O que Cocais faz, ao invés de proteger, é atacar. Cheguei a me interessar por aquilo que as personagens diziam brevemente, mas não tive a chance de ouví-las. Elas não têm voz, quase não falam. O que interessa ao filme é a construção de uma estética da esquisitice, é - como a um adolescente rebelde - chocar.

Numa outra direção, temos A Tal Guerreira. Realizado por um antropólogo, o filme tem relação com sua pesquisa sobre religiões afro-brasileiras. Vemos aqui se confundirem questões do Cinema e da Antropologia no que diz respeito à relação que se estabelece com o outro (sempre muito densa em uma etnografia). A Tal Guerreira é uma alegria para os olhos e para os ouvidos. Marcelo Caetano tem uma preocupação enorme em abordar as crenças populares de um ponto de vista etnográfico, conferindo àquelas declarações o estatuto de um fato social, independente de qualquer questionamento que pudesse ser feito ao conteúdo filmado. O diretor adiciona depoimentos das pessoas que alcançaram seus objetivos ou foram agraciadas pelo espírito de Clara Nunes, demonstrando de que forma a realidade é alterada concretamente pela crença através da idéia da 'eficácia simbólica' (Lévi-Strauss, 1949).

A Tal Guerreira apresenta como a cantora seguiu sendo (re)apropriada culturamente de diferentes formas. Seja na Umbanda, no candomblé, na igreja católica, numa roda de samba ou através de performances de uma travesti, Clara é um mito e é bem aqui que reside a grandiosidade do filme. Ele vai de encontro ao 'desencantamento do mundo' previsto por Max Weber e fala de um mundo contemporâneo onde, muitas vezes, há espaço para o mito em detrimento das explicações racionais (mythos > logos).


A televisão e o aparelho de som em pleno culto umbandista falam de uma dimensão de transformação da cultura, através da qual a tradição é síntese de reprodução e variação. Isso porque a cultura não é maior ou menor de acordo com o tempo, ela apenas vive. A performance da transformista que faz shows como Clara Nunes é um ponto de encontro entre o sagrado e o profano, questionando a dicotomia com a qual muitas vezes insistimos em pensar o mundo. O filme é extremamente feliz em trazer para as telas uma vida social rica, complexa e, acima de qualquer outra coisa, viva. Uma preciosidade.

Terminando a sessão, Muito Além do Chuveiro é um filme delicioso talvez por tentar entender, o que também foi um questionamento das investigações de Leví-Strauss, "porque é que as pessoas são felizes", como elas são felizes. A dinâmica é muito bem realizada, apresentando primeiro personagens em um plano geral e depois indo ao encontro deles em seus ambientes íntimos. A diretora, sensivelmente, percebeu esse caminho entre intimidade e publicidade orientando toda a lógica do karaokê. A montagem, então, percorre o sentido inverso daquele trilhado pelas personagens na vida real. O filme evidencia os aspectos de 'fama' e 'público', mostrando a importância dessas categorias na vida dos sujeitos que se inserem nessa prática.

Tony Fafá nos recebe na cozinha de sua casa, onde costuma cantarolar enquanto prepara pratos para jantar com os filhos. Depois do jantar, os filhos saem com as namoradas e... ele vai cantar! Letícia está em seu carro, à noite, rodando pelas ruas da cidade como faz freqüentemente sem que haja uma câmera ligada. Vemos Letícia pelo espelho retrovisor e, enquanto nos divertimos com suas estórias, podemos também apreciar ótimos enquadramentos e uma estética noturna super cuidadosa. O foco manual utilizado nas garrafas do bar é também exemplo da competência técnica que ajuda a fazer desse filme 18 minutos de boa diversão.

Diego Madih

REPRISE: SAB 01/11, 12H30 - CAIXA 1

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O pós-carpe diem de “Sem Amanhã...”

Competição Internacional 2

"Sem amanhã..." é um filme sobre o dia seguinte de casais de uma noite só. Terminado o sexo, deixa de fazer sentido o estar junto. Pelo curta, percebemos que apesar de todo o fugaz da situação ocorre sim uma separação, feita de várias pequenas despedidas entre o vestir-se e o “a gente se vê por aí.”

Uma mulher está deitada na cama. O silêncio, a luz, os minúsculos gestos de indiferença fazem com que ela vá recobrando a sensação de estar sozinha. Longe de qualquer condescendência com o espectador, a câmera faz do sentimento de solidão sua imagem absoluta.

Sem desviar da personagem, não permite que ela saia de quadro ou o divida com alguém. Em cena, há exclusivamente a protagonista solitária. Tudo ao seu redor é acessório fora de foco. Essa opção formal é levada ao extremo na cena em que a moça e o rapaz estão conversando. Abandona-se o clássico plano e contra-plano. Em seu lugar, observamos o efeito que o teor do diálogo tem sobre ela. Eles são desconhecidos e constatar isso a impacta. Num relance, ela parece ter vontade de ficar um pouco mais, conhecê-lo melhor. Mas logo percebe a impossibilidade concreta desta idéia.

A filmagem é perturbadoramente intimista. Vemos e ouvimos como se fôssemos a mulher da tela. Os planos bem fechados esmiúçam as reações mais simples e somos capazes de acompanhar seus pensamentos e angústias, sem que se diga uma palavra. Acima da identificação, compreendemos a personagem.

Justamente por não haver qualquer intenção de apelo moral, "Sem amanhã..." questiona, com vigor reflexivo, um certo vazio existencial das relações modernas. Faz pensar sobre como lidamos com o pós-carpe diem.


(Talita Marçal)

Andrea Tonacci

O programa especial dedicado ao diretor e apresentado ontem no Odeon às 21h30min contou com as possibilidades cinematográficas experimentadas por ele em curtas metragens ao longo de sua carreira. Olho por olho, filme de 66 é o retrato de uma geração que calada pela força busca nela a sua redenção. Diversos planos caminham pela cidade encadeados pelas expressões insossas dos personagens, escancarando uma juventude que calada em si mesma explodia em raiva e impotência. Bla Bla Bla, de 68 tem um cuidado técnico evidente, dos créditos iniciais à montagem. Paulo Gracindo é espetacular na personificação do ditador em crise nacional e a fotografia o auxilia nesse processo. Chama a atenção a montagem repleta de cenas de arquivo e também ficcionais. Oscilando entre o experimentalismo e a metalinguagem, Tonacci constrói um argumento irônico e forte para tecer uma crítica contundente ao Regime Militar da década de 60.
Óculos para ver pensamentos, de 94, é um filme documental sobre o processo de criação. Tonacci, um rapper e um repentista se encontram para criar uma intervenção musical que tenha por mote a visão. Os óculos em questão são parte da intervenção e quando fechados nada se enxerga a não ser o próprio pensamento. A partir daí vemos o diretor e os músicos repensando a questão da visão enquanto possibilidade de entendimento crítico de mundo. Para ver TV tem que ficar ligado, de 2000, retoma essa discussão, nesse caso em relação ao que é veiculado na Televisão. O psiquiatra Angelo Gaiarsa e rappers, entre eles Thaíde, dialogam sobre a recepção imagética alienada, Tonatti retoma na montagem imagens de Bla Bla Bla. Os dois curtas problematizam a relação entre visualidade e crítica, afirmando a potencialidade das mensagens visuais, o apelo dos meios de comunicações e a alienação.
A sessão contou ainda com Comerciais para a bienal de artes de São Paulo, realizados em 98, atestando a criatividade na construção estética de montagem e realização do diretor. Por fim, Página de diário de viagem, de 2000 apresenta um registro autoral do processo de pesquisa para o longa Serras da Desordem, lançado em 2006. A leitura da página do diário de viagem apresenta um Tonacci em processo de estranhamento e descoberta do seu objeto fílmico. Assim como em Óculos para ver pensamentos, o diretor se personaliza evidenciando suas expectativas e críticas ao processo de criação.
A obra de Andrea Tonacci é riqueza de possibilidades fílmicas, transita entre cinema experimental, documental e ficcional com tal destreza que a isso só poderíamos chamar de maestria. Mestre esse que não hesita em escancarar críticas ao modo como os meios de comunicação se apropriam de discursos e ignoram uma massa que inadvertidamente se cala.
Os filmes de Andrea Tonacci serão veiculados novamente no dia 05/11 às 17h30min na Caixa Cultural 2. Não perca!

Cocais, a cidade reinventada – Inês Cardoso

A estética da amoralidade

Cocais, a cidade reinventada é uma provocação inteligente a uma sociedade da assepsia visual e pretensamente aberta às diferenças. A obra ousa fugir do paternalismo ao lidar com os pacientes de um manicômio ressaltando inescrupulosamente seus aspectos desagradáveis. Ao focar em primeiríssimos planos olhos deformados, bocas desdentadas e rostos esmagados pelo passar do tempo, Inês Cardoso procura suscitar no público sentimentos de estranhamento, aversão e indignação.
Acentuando o estado degradante dos pacientes com o movimento da música clássica angustiante, da câmera desfocada e da imagem mal tratada, o filme é convite à amoralidade através da loucura. De tanto conviver com os pacientes, a própria obra adquire uma estética louca e, conseqüentemente, subversiva.
A priori, tende-se a receber a obra como audácia gratuita, ofensa aos valores contemporâneos da solidariedade e da beleza nas diferenças. É possível e até provável a interpretação de que os realizadores estariam se aproveitando do estado de degradação dos habitantes da cidade manicomial, exacerbando seus aspectos repugnantes e abjetos para uma experimentação meramente estética.
Eis aí o jogo em que nos aprisiona Cocais: acabamos paradoxalmente por criticar a nós mesmos, já que a instituição psiquiátrica constitui por definição a repressão arbitrária a um tipo de comportamento que não se adequa à normalidade. O último plano é revelador: enquanto os pacientes dormem ao ar livre, um rebanho de ovelhas invade o cenário e passa a deambular por entre as camas. A crítica aqui é contundente: como as ovelhas, os indivíduos são levados a abdicar de sua singularidade e domesticados em nome de uma reintegração social. O detalhe mais perturbador é que as ovelhas não representam tanto os pacientes, mas seu estado final, quando estarão teoricamente curados. Ou seja, nós.
A fusão forma-conteúdo se consuma nas sensações provocadas pela estética forte, repugnante e perturbadora, que se completa no olhar espectador. A obra dispensa formalidades e obriga o espectador a considerá-la para além da tela, no contexto em que ela emerge e em que ele próprio participa na produção de sentido.
Para fugir dos preconceitos e do senso-comum de uma sociedade bem estruturada demais, Inês Cardoso transforma loucura em invenção: Cocais é “a história de uma cidade que se reinventou através de um filme, ou a história de um filme que foi inventado por uma cidade”.
Na dialética entre objeto e sujeito da obra, é impossível determinar quem a realizou e quem é representado, pois também a loucura do lugar construiu o filme e o social se tornou estético.

Ciro Oiticica

[Noite de Serão] Fernando Secco

Trabalho. Trabalho. Trabalho... o curta de Fernando Secco, Noite de Serão, fecha uma trilogia dedicada aos homens, ao trabalho, e a uma possível incompatibilidade entre os dois. Precedido por Fim de Expediente, de Alexandre Sivolella e Hora Extra de Davi Kolb, Noite de Serão acompanha a rotina de cinco vagabundos sentados num velho sofá no subúrbio, que passam as noite e os dias conversando, batendo-papo e sufocando a “mulherada”.

Ao contrário do usual enfoque na periferia, pelo viés da violência e tragédia, o roteiro de Marco Borges, prefere nos aproximar dos personagens e de seu universo pela familiaridade a descontração. Afinal, se Luizinho, Bodão e Micão ainda estão desempregados é por esforço e aptidão. E enquanto correm atrás de um pozinho todo fim de tarde, é porque de alguma maneira todo mundo precisa sair da rotina (até um crente recém-convertido).

Por trás da indisfarçável malandragem e do machismo suburbano é perceptível nestes homens uma leve melancolia que denuncia, que no fundo, estão todos perdidos e sem esperanças. E é pela leveza com que aos autores mostram o dia-a-dia de quem não se deixa abater (ou desesperar com o dia seguinte) que acabam conquistam o público.


domingo, 2 de novembro de 2008

Filmes mudos, japoneses, da década de 20, e tão falados

Foco Japão 1

Yasujiru Ozu e Kenji Mizoguchi, ao lado de Akira Kurosawa, são tidos por muitos críticos e cinéfilos como os grandes mestres do cinema moderno japonês. Não à toa, os dois cineastas abrem a versão homenagem do Curta Cinema aos 100 anos de imigração japa. Os filmes escolhidos são raridades do cinema mudo: “Um Garoto Franco” e “A Marcha de Tóquio”, ambos feitos em 1929.

A importância destes curtas começa pelo simples fato de eles serem o que são: realizações iniciais de diretores-referência. No mais, o que há de inestimável no material é o valor de alteridade que possui. Dele, possivelmente, vieram as primeiras imagens vistas pelo Ocidente sobre os modos de vida do Japão da época.


Lado histórico à parte, os filmes continuam a entreter, no melhor sentido do termo. “Um Garoto Franco”, de Ozu, mostra um menino espoleta que, sem perceber, é seqüestrado enquanto brinca de esconde-esconde. Isso porque o bandido tem uma tática e tanto para atraí-lo: o distrai com caretas, lhe dá doces e brinquedos. Ele adora a situação e aproveita tudo o que tem direito. Num estilo que em nada deixaria a dever para Macaulay Culkin em “Esqueceram de Mim”, o garoto afugenta o seqüestrador. As cenas cômicas têm um “timing” ótimo e, apesar dos gestos amplos e de expressões faciais bem marcadas, não saímos com a sensação de que acabamos de assistir a um filme mudo excessivamente teatralizado e, por isso, datado. Ao contrário, os gestos amplos e expressões faciais marcadas compõem o sentido do curta. Ozu equilibra o tom da comédia: o riso é fácil, mas nem por isso apelativo ou escrachado além da conta.

Mudando para o gênero chororô, “A Marcha de Tóquio” tem como protagonista a órfã Michiyo, obrigada a trabalhar como gueixa ao ficar desempregada. Nessa condição, se envolve com dois jovens ricos, Yoshiki e Sakuma, que se apaixonam por ela. Senhor Fujimoto, pai de Yoshiki, também se interessa pela moça, mas por causa de um anel, descobre que ela é sua filha bastarda. A revelação de a mocinha ser, na verdade, meio-irmã do mocinho levou grande parte da platéia do Odeon à risada. Talvez porque “Um Garoto Franco” foi exibido antes, o público tenha acreditado tratar-se de uma segunda comédia. Ou talvez porque seja inevitável achar graça de certos recursos melodramáticos levados à exaustão pela teledramaturgia. De uma forma ou de outra, “A Marcha de Tóquio” foi reinterpretada às avessas do sentido original. O que Mizoguchi dirigiu foi um drama marcado, inclusive, pelo trauma pessoal de sua própria irmã ter sido vendida como gueixa.

Além da impossibilidade de realização amorosa, Mizoguchi retrata o triste nas diferenças de classe social. É aí a redenção do filme, sua sobrevida, uma vez que se mantém atual ao criticar a desigualdade. A cena síntese é o primeiro encontro de Michiyo com Yoshiki e Sakuma. Eles estão numa quadra de tênis, situada num andar acima de onde a moça está. A bolinha cai. Mesmo de baixo, ela tenta devolvê-la, sendo impedida por uma grade. Simples, belíssima maneira de metaforizar a distância entre os mundos, o contato possível e o impedimento, que resulta na separação derradeira.

“A Marcha de Tóquio” tem outros elementos muito bons. No início do curta, antecipando a ficção que será contada, uma câmera (documental?) passeia pelas ruas da cidade, valorizando o espaço urbano moderno. Lembra alguns filmes europeus de vanguarda dos anos 20, cujo tema era o cotidiano das metrópoles. Sobre os usos da forma por Mizoguchi, se há uma censura que pode ser feita, ela vem do comentário reclamão que escutei na sessão: “Nunca vi um filme mudo tão falado!” Justifica-se. Sendo a história complexa, o diretor tenta explicá-la por meio de diálogos. Como não há som para dar voz aos personagens, as imagens são entrecortadas por um entra e sai de cartelas "conversas".

Como a platéia do Odeon, na qual eu estava, revirou o drama de Mizoguchi em ares de comédia, peço a licença para uma pequena e inocente vingança, pelo diretor. Digo ao espectador anonimamente citado que sim, ele tem razão. Tirando Chaplin e outros poucos, também nunca vi filmes mudos tão falados. Filmes mudos, japoneses, da década de 20, e que ainda falam com a gente de modo tão especial.

(Talita Marçal)


Para quem ainda quiser ver o Foco Japão 1: 5 de novembro, quarta-feira, às 19h na Caixa Cultural 1