Eu passarinho
Cinema de observação, Encanto opta pela melhor forma de se relacionar com a terceira-idade. A câmera procura uma aproximação por duas vias opostas. A câmera imóvel e aberta respeita a polissemia da imagem alternando-se com planos-detalhe que captam a minúcia dos gestos e o vazio dos olhares. Os diálogos são substituídos pelo canto dos pássaros e pelo ruído local. As palavras e os movimentos bruscos não vêm manchar a meditação que a obra oferece. A observação como aprendizagem, eis a postura do filme.
O distanciamento etário e filosófico se justifica. O mundo em que entra a obra é consideravelmente diverso do habitual. O olhar da jovem diretora Julia de Simone contrasta com seu objeto, os idosos. O frenesi da contemporaneidade não tem carteirinha do clube, a melodia dos passarinhos tudo neutraliza e subverte. A vida das pessoas é um tranqüilo passar do tempo, marcado pela companhia vivaz dos pássaros.
Encanto é um relato sobre o resgate do sublime nos elementos simples da vida. Mais que um trabalho sobre o olhar ou o ouvir, o curta aborda questões existenciais, afloradas no estágio da vida em foco. A dedicação derramada em tantas horas de meditação não é meramente esclerose ou terapia ocupacional. O que buscam os apreciadores no canto onírico dos pássaros é o mistério . Contrariamente à busca ansiosa dos românticos, a obsessão é substituída pela fé como espera serena do devir, mas sem sentido eclesiástico. “Quem não espera, não encontrará o inesperado, pois ele é inexplorável e inacessível”, dizia um pré-socrático. O ritual do canto é preparação para o imponderável da morte, entrega ao desconhecido e à beleza do simples.
A linguagem vista como limitação transparece nos planos abertos e no canto dos pássaros, como arte ligada ao inefável, ao indizível, que buscam trazer da fonte o belo inalterado. A obra é uma reunião de pessoas que desistiram de buscar a verdade nas palavras ou nas opiniões, perceberam a corrupção dos sentidos, descobriram o vazio por trás do simulacro.
“Todos esses que aí estão atravancando meu caminho, eles passarão. Eu passarinho!”. Os versos brancos, puros de Quintana sintetizam esse estado de espírito. Opondo-se à grandiloqüência do “passarão”, só o passageiro é o que fica: o “passarinho”.
No paradoxo em que se encontram os idosos, já que oscilam entre muito tempo livre e pouco tempo restante, há de se conjeturar que a busca da beleza original leva a vida inteira; a morte não seria nada mais que seu encontro. Assim como paramos de procurar após encontrar, deixamos de viver quando alcançamos o divino. O projeto desses sábios é dar seguimento àquilo que a vida moderna interrompeu: a espera pela espera.
Diz-se que o autor é parte da obra. Encanto o prova. A beleza e simplicidade são um pedaço de Júlia. Sua presença no debate após a sessão permitiu identificar em seu sorriso o mesmo encanto da película, mas fora do alcance da crítica. Ainda Quintana faz a mediação: “se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las. Que tristes os caminho se não fora a mágica presença das estrelas!”
Ciro Oiticica
Cinema de observação, Encanto opta pela melhor forma de se relacionar com a terceira-idade. A câmera procura uma aproximação por duas vias opostas. A câmera imóvel e aberta respeita a polissemia da imagem alternando-se com planos-detalhe que captam a minúcia dos gestos e o vazio dos olhares. Os diálogos são substituídos pelo canto dos pássaros e pelo ruído local. As palavras e os movimentos bruscos não vêm manchar a meditação que a obra oferece. A observação como aprendizagem, eis a postura do filme.
O distanciamento etário e filosófico se justifica. O mundo em que entra a obra é consideravelmente diverso do habitual. O olhar da jovem diretora Julia de Simone contrasta com seu objeto, os idosos. O frenesi da contemporaneidade não tem carteirinha do clube, a melodia dos passarinhos tudo neutraliza e subverte. A vida das pessoas é um tranqüilo passar do tempo, marcado pela companhia vivaz dos pássaros.
Encanto é um relato sobre o resgate do sublime nos elementos simples da vida. Mais que um trabalho sobre o olhar ou o ouvir, o curta aborda questões existenciais, afloradas no estágio da vida em foco. A dedicação derramada em tantas horas de meditação não é meramente esclerose ou terapia ocupacional. O que buscam os apreciadores no canto onírico dos pássaros é o mistério . Contrariamente à busca ansiosa dos românticos, a obsessão é substituída pela fé como espera serena do devir, mas sem sentido eclesiástico. “Quem não espera, não encontrará o inesperado, pois ele é inexplorável e inacessível”, dizia um pré-socrático. O ritual do canto é preparação para o imponderável da morte, entrega ao desconhecido e à beleza do simples.
A linguagem vista como limitação transparece nos planos abertos e no canto dos pássaros, como arte ligada ao inefável, ao indizível, que buscam trazer da fonte o belo inalterado. A obra é uma reunião de pessoas que desistiram de buscar a verdade nas palavras ou nas opiniões, perceberam a corrupção dos sentidos, descobriram o vazio por trás do simulacro.
“Todos esses que aí estão atravancando meu caminho, eles passarão. Eu passarinho!”. Os versos brancos, puros de Quintana sintetizam esse estado de espírito. Opondo-se à grandiloqüência do “passarão”, só o passageiro é o que fica: o “passarinho”.
No paradoxo em que se encontram os idosos, já que oscilam entre muito tempo livre e pouco tempo restante, há de se conjeturar que a busca da beleza original leva a vida inteira; a morte não seria nada mais que seu encontro. Assim como paramos de procurar após encontrar, deixamos de viver quando alcançamos o divino. O projeto desses sábios é dar seguimento àquilo que a vida moderna interrompeu: a espera pela espera.
Diz-se que o autor é parte da obra. Encanto o prova. A beleza e simplicidade são um pedaço de Júlia. Sua presença no debate após a sessão permitiu identificar em seu sorriso o mesmo encanto da película, mas fora do alcance da crítica. Ainda Quintana faz a mediação: “se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las. Que tristes os caminho se não fora a mágica presença das estrelas!”
Ciro Oiticica
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