A estética da amoralidade
Cocais, a cidade reinventada é uma provocação inteligente a uma sociedade da assepsia visual e pretensamente aberta às diferenças. A obra ousa fugir do paternalismo ao lidar com os pacientes de um manicômio ressaltando inescrupulosamente seus aspectos desagradáveis. Ao focar em primeiríssimos planos olhos deformados, bocas desdentadas e rostos esmagados pelo passar do tempo, Inês Cardoso procura suscitar no público sentimentos de estranhamento, aversão e indignação.
Acentuando o estado degradante dos pacientes com o movimento da música clássica angustiante, da câmera desfocada e da imagem mal tratada, o filme é convite à amoralidade através da loucura. De tanto conviver com os pacientes, a própria obra adquire uma estética louca e, conseqüentemente, subversiva.
A priori, tende-se a receber a obra como audácia gratuita, ofensa aos valores contemporâneos da solidariedade e da beleza nas diferenças. É possível e até provável a interpretação de que os realizadores estariam se aproveitando do estado de degradação dos habitantes da cidade manicomial, exacerbando seus aspectos repugnantes e abjetos para uma experimentação meramente estética.
Eis aí o jogo em que nos aprisiona Cocais: acabamos paradoxalmente por criticar a nós mesmos, já que a instituição psiquiátrica constitui por definição a repressão arbitrária a um tipo de comportamento que não se adequa à normalidade. O último plano é revelador: enquanto os pacientes dormem ao ar livre, um rebanho de ovelhas invade o cenário e passa a deambular por entre as camas. A crítica aqui é contundente: como as ovelhas, os indivíduos são levados a abdicar de sua singularidade e domesticados em nome de uma reintegração social. O detalhe mais perturbador é que as ovelhas não representam tanto os pacientes, mas seu estado final, quando estarão teoricamente curados. Ou seja, nós.
A fusão forma-conteúdo se consuma nas sensações provocadas pela estética forte, repugnante e perturbadora, que se completa no olhar espectador. A obra dispensa formalidades e obriga o espectador a considerá-la para além da tela, no contexto em que ela emerge e em que ele próprio participa na produção de sentido.
Para fugir dos preconceitos e do senso-comum de uma sociedade bem estruturada demais, Inês Cardoso transforma loucura em invenção: Cocais é “a história de uma cidade que se reinventou através de um filme, ou a história de um filme que foi inventado por uma cidade”.
Na dialética entre objeto e sujeito da obra, é impossível determinar quem a realizou e quem é representado, pois também a loucura do lugar construiu o filme e o social se tornou estético.
Ciro Oiticica
Cocais, a cidade reinventada é uma provocação inteligente a uma sociedade da assepsia visual e pretensamente aberta às diferenças. A obra ousa fugir do paternalismo ao lidar com os pacientes de um manicômio ressaltando inescrupulosamente seus aspectos desagradáveis. Ao focar em primeiríssimos planos olhos deformados, bocas desdentadas e rostos esmagados pelo passar do tempo, Inês Cardoso procura suscitar no público sentimentos de estranhamento, aversão e indignação.
Acentuando o estado degradante dos pacientes com o movimento da música clássica angustiante, da câmera desfocada e da imagem mal tratada, o filme é convite à amoralidade através da loucura. De tanto conviver com os pacientes, a própria obra adquire uma estética louca e, conseqüentemente, subversiva.
A priori, tende-se a receber a obra como audácia gratuita, ofensa aos valores contemporâneos da solidariedade e da beleza nas diferenças. É possível e até provável a interpretação de que os realizadores estariam se aproveitando do estado de degradação dos habitantes da cidade manicomial, exacerbando seus aspectos repugnantes e abjetos para uma experimentação meramente estética.
Eis aí o jogo em que nos aprisiona Cocais: acabamos paradoxalmente por criticar a nós mesmos, já que a instituição psiquiátrica constitui por definição a repressão arbitrária a um tipo de comportamento que não se adequa à normalidade. O último plano é revelador: enquanto os pacientes dormem ao ar livre, um rebanho de ovelhas invade o cenário e passa a deambular por entre as camas. A crítica aqui é contundente: como as ovelhas, os indivíduos são levados a abdicar de sua singularidade e domesticados em nome de uma reintegração social. O detalhe mais perturbador é que as ovelhas não representam tanto os pacientes, mas seu estado final, quando estarão teoricamente curados. Ou seja, nós.
A fusão forma-conteúdo se consuma nas sensações provocadas pela estética forte, repugnante e perturbadora, que se completa no olhar espectador. A obra dispensa formalidades e obriga o espectador a considerá-la para além da tela, no contexto em que ela emerge e em que ele próprio participa na produção de sentido.
Para fugir dos preconceitos e do senso-comum de uma sociedade bem estruturada demais, Inês Cardoso transforma loucura em invenção: Cocais é “a história de uma cidade que se reinventou através de um filme, ou a história de um filme que foi inventado por uma cidade”.
Na dialética entre objeto e sujeito da obra, é impossível determinar quem a realizou e quem é representado, pois também a loucura do lugar construiu o filme e o social se tornou estético.
Ciro Oiticica
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