domingo, 2 de novembro de 2008

Filmes mudos, japoneses, da década de 20, e tão falados

Foco Japão 1

Yasujiru Ozu e Kenji Mizoguchi, ao lado de Akira Kurosawa, são tidos por muitos críticos e cinéfilos como os grandes mestres do cinema moderno japonês. Não à toa, os dois cineastas abrem a versão homenagem do Curta Cinema aos 100 anos de imigração japa. Os filmes escolhidos são raridades do cinema mudo: “Um Garoto Franco” e “A Marcha de Tóquio”, ambos feitos em 1929.

A importância destes curtas começa pelo simples fato de eles serem o que são: realizações iniciais de diretores-referência. No mais, o que há de inestimável no material é o valor de alteridade que possui. Dele, possivelmente, vieram as primeiras imagens vistas pelo Ocidente sobre os modos de vida do Japão da época.


Lado histórico à parte, os filmes continuam a entreter, no melhor sentido do termo. “Um Garoto Franco”, de Ozu, mostra um menino espoleta que, sem perceber, é seqüestrado enquanto brinca de esconde-esconde. Isso porque o bandido tem uma tática e tanto para atraí-lo: o distrai com caretas, lhe dá doces e brinquedos. Ele adora a situação e aproveita tudo o que tem direito. Num estilo que em nada deixaria a dever para Macaulay Culkin em “Esqueceram de Mim”, o garoto afugenta o seqüestrador. As cenas cômicas têm um “timing” ótimo e, apesar dos gestos amplos e de expressões faciais bem marcadas, não saímos com a sensação de que acabamos de assistir a um filme mudo excessivamente teatralizado e, por isso, datado. Ao contrário, os gestos amplos e expressões faciais marcadas compõem o sentido do curta. Ozu equilibra o tom da comédia: o riso é fácil, mas nem por isso apelativo ou escrachado além da conta.

Mudando para o gênero chororô, “A Marcha de Tóquio” tem como protagonista a órfã Michiyo, obrigada a trabalhar como gueixa ao ficar desempregada. Nessa condição, se envolve com dois jovens ricos, Yoshiki e Sakuma, que se apaixonam por ela. Senhor Fujimoto, pai de Yoshiki, também se interessa pela moça, mas por causa de um anel, descobre que ela é sua filha bastarda. A revelação de a mocinha ser, na verdade, meio-irmã do mocinho levou grande parte da platéia do Odeon à risada. Talvez porque “Um Garoto Franco” foi exibido antes, o público tenha acreditado tratar-se de uma segunda comédia. Ou talvez porque seja inevitável achar graça de certos recursos melodramáticos levados à exaustão pela teledramaturgia. De uma forma ou de outra, “A Marcha de Tóquio” foi reinterpretada às avessas do sentido original. O que Mizoguchi dirigiu foi um drama marcado, inclusive, pelo trauma pessoal de sua própria irmã ter sido vendida como gueixa.

Além da impossibilidade de realização amorosa, Mizoguchi retrata o triste nas diferenças de classe social. É aí a redenção do filme, sua sobrevida, uma vez que se mantém atual ao criticar a desigualdade. A cena síntese é o primeiro encontro de Michiyo com Yoshiki e Sakuma. Eles estão numa quadra de tênis, situada num andar acima de onde a moça está. A bolinha cai. Mesmo de baixo, ela tenta devolvê-la, sendo impedida por uma grade. Simples, belíssima maneira de metaforizar a distância entre os mundos, o contato possível e o impedimento, que resulta na separação derradeira.

“A Marcha de Tóquio” tem outros elementos muito bons. No início do curta, antecipando a ficção que será contada, uma câmera (documental?) passeia pelas ruas da cidade, valorizando o espaço urbano moderno. Lembra alguns filmes europeus de vanguarda dos anos 20, cujo tema era o cotidiano das metrópoles. Sobre os usos da forma por Mizoguchi, se há uma censura que pode ser feita, ela vem do comentário reclamão que escutei na sessão: “Nunca vi um filme mudo tão falado!” Justifica-se. Sendo a história complexa, o diretor tenta explicá-la por meio de diálogos. Como não há som para dar voz aos personagens, as imagens são entrecortadas por um entra e sai de cartelas "conversas".

Como a platéia do Odeon, na qual eu estava, revirou o drama de Mizoguchi em ares de comédia, peço a licença para uma pequena e inocente vingança, pelo diretor. Digo ao espectador anonimamente citado que sim, ele tem razão. Tirando Chaplin e outros poucos, também nunca vi filmes mudos tão falados. Filmes mudos, japoneses, da década de 20, e que ainda falam com a gente de modo tão especial.

(Talita Marçal)


Para quem ainda quiser ver o Foco Japão 1: 5 de novembro, quarta-feira, às 19h na Caixa Cultural 1









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