sábado, 8 de novembro de 2008

Uma cidade invisível chamada "Dreznica"

Competitiva Nacional 6
A Dreznica de Anna Azevedo não fica na Eslovênia. A partir de relatos dos que não podem ver, a diretora desterritorializa a pequena cidade e a reconstrói na tela como um não-lugar onde imagens significam sensações. A pergunta inicial do documentário, de como os cegos sonham, inspira os entrevistados a divagarem, numa prosa poética, sobre como cada um deles concebe o mundo.

Em vez do breu total, a cegueira é comparada ao azul liberdade do céu. Para os que guardam lembranças de um dia terem visto, a memória pode significar permanência ou vontade de esquecimento. Enquanto um entrevistado se recorda do próprio pai, hoje bem mais velho, como tendo eternos 31 anos, a menina que aos seis parou de enxergar repentinamente não sabe como isso lhe aconteceu.

A relação entre o visual e os sonhos tampouco pode ser expressa de maneira linear. Em alguns casos, os sonhos ficam mais abstratos; em outros, ocorre o inverso. Como se a ponte afetiva entre imagem e inconsciente fosse pouco a pouco deteriorando-se, os sonhos vão se tornando mais sintéticos.


Essas imagens pensamento, imagens oníricas, imagens memória são verdadeiros desenhos falados, cuja estruturação imagética vai se concretizando num plano íntimo à medida que ouvimos essas histórias de vida e as traduzimos em sensações. Ocorre um extravasamento do olhar para além de formatos, cores, profundidades. O pictórico se vê ultrapassado pela necessidade de re-vermos o conceito do que é imagem.

Do mesmo modo em que o som funciona para os cegos como o contato mais imediato com as pessoas, só temos acesso aos personagens pela voz. A opção de aproveitar apenas o áudio da entrevista pode também ser entendida como o recurso estilístico enfático do colocar-se no lugar do outro, no entanto, em Dreznica esta escolha é mais elaborada do que isso.

A diretora deixa-se guiar. Na subversão que o cinema faz da realidade, seus personagens não precisam de cães ou bengalas. Em meio ao desconhecido, ao novo, em meio à fluidez, eles estão em casa. Podem, portanto, assumir a função de guias. A exemplo do que eles estão comunicando, Anna Azevedo livra-se, ela própria, das amarras formais. Se desfaz do tradicional modelo de documentário de entrevista e retira dele apenas o que contém de mais sublime: a fala. É a imersão do curta no sensorial. Imersão essa aprofundada pelas imagens que acompanham os depoimentos.

Não necessariamente as cenas casam com o que está sendo dito, embora haja momentos (lindos) de encontro. Assistimos a trechos entrecortados de filmes de viagem, de festas infantis e variadas situações domésticas. Em outro apanhado visual, céu, árvores, quedas d’água, um barco em pleno nevoeiro. Fugindo do excesso óbvio de foco e desfoco, as imagens poetizam exatamente por não serem pretensiosas. Não querem incorporar a experiência da cegueira, apenas tocar, tatear seus contornos.

Pouco importa se as imagens exibidas não foram de fato vivenciadas pelos personagens do curta. Elas não são alheias a eles. Nem a nós. Ao reunir arquivos caseiros filmados em Super 8 por amigos, familiares e todo tipo de gente, Anna Azevedo universaliza essas memórias e insere dentro de nós a emoção imaginada desta cidade invisível chamada Dreznica.

(Talita Marçal)

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